Lembrava de uma frase dita por siá Oldira Soturno, sua avó, já doente
na cama de ferro: “Tudo o que a vida nos dá, a vida nos tiraâ€. “A
velhaâ€, como era conhecida, tivera estância, mas depois de o marido
morto, os filhos foram embora e ficou só com a filha mais nova e o
neto. Dizia palavras áridas e a boca estava mesmo ressecada pelo
tempo. A alma, contudo, era mais tórrida. Olhava para a avó como se
enxergasse um enorme cerro feito de terra seca. Na grande estiagem os
açudes ficaram assim, os leitos esbugalhados, morrões soltos que
chutava para longe. As carcaças das vacas mortas se espalharam pelas
propriedades vizinhas. Os homens andavam com o olhar vidrado. Depois,
quando as tormentas chegaram, as ruas transbordaram, os campos ficaram
meses alagados. O verde retornou aos prados, os fÃcus da praça
ganhavam vida outra vez e tudo seguiu “como dantes no quartel de
Arantesâ€, como dizia o TurÃbio, enquanto entornava o copo de canha.
Ele e a mãe seguiram morando naquela quinta na entrada da Vila Rica, o
que restara das propriedades da famÃlia. Além de uma quadra de campo
que arrendavam para os lavoureiros. A mãe ainda herdara uma pensão do
pai, o coronel Soturno. O dinheiro dava para pagar dois empregados e
pequenas despesas. Ao lado da antiga morada, havia um pequeno bosque
bem cuidado, repleto de jerivás, quaresmeiras, pitangueiras e alguns
pés de guabiroba. Debaixo dessa sombra, o mulato Demétrio
preparava-lhe a cama de campanha todas as tardes, onde sesteava de
roncar arte às cinco da tarde. De tanto ouvir a ladainha da avó,
deixara-se levar pelos dias, sem planos, apenas carpeteando e jogando
bocha pelos bolichos. Nas cartas, era sortudo; na bocha, habilidoso no
ponto e no tiro. Sempre vencia. Gostava de beber samba, uma mistura de
Pepsi com cachaça. A melena preta escorrida pelos ombros e os olhos
esverdeados, iguais aos do avô, faziam suspirar uma meia dúzia de
moçoilas da cidadezinha. As más lÃnguas diziam que, no entanto, era
sustentado por duas viúvas ricas, rivais na criação de gado e no amor.
Certa vez, num domingo, ganhou todas as partidas de bocha, da manhã �
tarde, na cancha do Valdomiro. Depois rapou os trocos do Germano em
continuadas partidas de truco. Já de noite, decidiu passar na casa de
uma das viúvas, a dona Filhinha. Encontrou-a imóvel sobre a cama, de
boca aberta. Ao lado, um testamento que repassava-lhe todas as suas
posses. Guardou-o de volta no envelope e foi avisar o delegado, a
Brigada Militar. Seguiu pela rua deserta àquela hora, a passos lentos,
pensando na frase da avó. A vida tira, mas também devolve. Estava
tranqüilo e calmo. Não gostava de demonstrar alegrias. Era um Soturno.