Exuberante, Béatrice Dalle entrou no saguão do Hotel Gray d’Albion. Interceptei-a e pedi-lhe uma entrevista exclusiva. Riu. Manhosa e simpática, óculos na ponta do nariz, seios fartos, nádegas generosas, a atriz mítica de 37,2 le Matin (Betty Blue) , contornou os obstáculos colocados pelos assessores de imprensa e, dizendo-se seduzida pela idéia de ir um dia ao Brasil, aceitou falar para o Brasil. Pediu-me para ter a paciência de acompanhá-la a uma sessão de fotografias no Noga Hilton e a uma rápida entrevista para o Canal Plus no Martinez. Percursos fulminantes, com multidões de fãs nas portas e fotógrafos desesperados em todo canto. Na volta ao Albion, Béatrice, em uma gostosa e longa conversa, burilou as respostas entrecortadas que dera durante o deslocamento. Vivendo um novo grande amor, ela olha o mundo com alegria e generosidade.
As paixões de uma atriz mítica
JMS – O mito de 37, 2 le Matin é um peso em sua carreira ou o passaporte permanente para o sucesso?
Béatrice Dalle – O peso foi enorme durante muito tempo. Tentaram me rotular: atriz de um só filme. Eu me tornei ao mesmo tempo célebre e limitada. Ninguém, no fundo, acreditava que eu pudesse sair bem em outro papel. Enfatizou-se o aspecto erótico da obra e esqueceu o drama de um casal em conflito, perdido, em busca de algo. Guardo uma imagem excelente das mágicas filmagens de 37,2 , mas consegui provar que, como deve ser um atriz ou ator, tenho a capacidade da metamorfose. Creio que a época das incertezas já passou.
– É realmente possível ser pudica, conforme uma declaração sua, quando se é tão sensual e desejada?
Béatrice Dalle – Por que não seria? Não me exibo. Nem sequer fico com os seios de fora na praia. Mesmo assim, todo mundo fica atraído por minhas formas. Agrada-me saber que considera uma mulher extremamente carnal, mas mantenho a discrição. As que mostram muito têm, em geral, problemas com a sexualidade. Não emprego o tempo na propaganda do meu corpo.
– A sua inteligência e simpatia são sempre comentadas. Fora do cinema, o que lhe agrada mais fazer?
Béatrice Dalle – Amigos. Vivo para os outros. A solidão me horroriza. Preciso de muita gente em torno de mim. A comunicação é a minha maior qualidade. Família não se pode escolher, mas os amigos sim. São os verdadeiros irmãos que podemos ter ao longo da vida. As relações pessoais importam para mim mais do que tudo. Não me deixo prender pelas vaidades da sociedade. Prefiro os contatos singelos e sinceros. Os amigos são sempre poucos, mas verdadeiros e belos.
– E o amor? Há uma paixão, um sonho, vontade de ter filhos?
Béatrice Dalle – Uma grande paixão. Estou nas nuvens. Descubro a cada dia a grandeza do sexo com amor, do carinho partilhado, da vontade de estar junto e de tudo dar. É uma relação nova e não sei onde terminará. Talvez em casamento. Eu sou divorciada, mas nada tenho contra casar. Filhos? Sim. Em todo caso, o laço sangüíneo tem pouca importância para mim; Nenhuma. Quero adotar crianças de todas as cores e oferecer-lhes condições para que cresçam em um ambiente de tolerância, respeito e ausência de preconceitos. Adoro crianças. Há algo de muito maternal em mim.
– Atriz talentosa e bela, mito sexual, não lhe faltaram problemas durante algum tempo. A tempestade dissipou-se? A hora é da felicidade?
Béatrice Dalle – Sim. Da felicidade e da maturidade. Em Eu Não Tenho Sono, de minha amiga maravilhosa, Claire Denis, não possuo o papel de protagonista e mesmo assim estou contente. Aprendi que não é o número de minutos que se fica em cena o responsável pelo sucesso. Fundamental é o desempenho, que pode conquistar o público em duas ou três cenas. Não me considero um mito sexual, ainda que as pessoas me vejam assim. Encaram-me como mulher fatal, ajo como uma mulher comum. Quero paz, filhos, amor e amizade. Não houve, exatamente por isso, nenhuma dificuldade para interpretar meu personagem em Eu Não Tenho Sono : esposa indecisa e ligada ao marido.
– Como Claire Denis, cineasta dos excluídos, a marginalidade seduz-lhe?
Béatrice Dalle . Sem dúvida. Não suporto pensar que enquanto os homens se matam, as guerras religiosas multiplicam-se, as crianças abandonadas pululam e a fome devasta o Terceiro Mundo há quem se preocupe apenas com o sucesso pessoal, a riqueza ou as histórias sem conteúdo para filmes pretensiosos. Sinto-me uma marginal no mundo do cinema. Eu sou atriz por acaso. Não se trata de um sonho de criança, nem do desejo de passar por princesa em castelo inventados. Subir os degraus do Palácio do Festival não me transtorna. Cannes é um mercado do cinema e na minha concepção a arte não rima com mercadoria. Mas não posso mudar o mundo sozinha.
– A vida de estrela, com multidões de fãs, fotógrafos e jornalistas em seu encalço dão-lhe prazer ou cansaço?
Béatrice Dalle – Há o prazer das viagens, das relações que surgem, dos filmes maravilhosos e da arte. O desagradável é não poder parar para conversar com todo mundo, dar um beijo, um aperto de mão, uma palavra. A pressa e o tumulto levam a um certo distanciamento. Começa-se a dizer que a pretensão nos domina. Eu não me tenho por pretensiosa. Infelizmente, com franqueza, preciso de guarda-costas. É impossível ceder a todos, ainda que a vontade de me dar um pouco seja permanente.
– Ser dirigida por uma mulher faz diferença ou o sexo nada tem a ver com isso?
Béatrice Dalle – Sim e não. O número de diretores extraordinários é enorme. Para mim, contudo, o trabalho com diretoras, Diane Kurys, Claire Devers e Claire Denis, resultou em algo extremamente gratificante; há uma sintonia que ultrapassa o limite das exigências técnicas do trabalho de ator. Claire Denis é especial para mim: chefe, amiga, conselheira e maravilhosa diretora. Não sou sexista. É bom salientar. Não luto contra os homens, embora tenha convicção da necesidade das mulheres de alcançarem de fato a igualdade. Em certas camadas sociais boa parte do caminho foi feito. Em outras, como todo mundo sabe, há muito trabalho a realizar. O talento, porém, não é atributo de um ou outro sexo.
– Projetos para o futuro imediato?
Béatrice Dalle – Trabalhar e amar. Explorar ao máximo a paixão que me caiu sobre a cabeça. Não quero perder esta aventura de sentimento e carne.
1995