Primeiro levaram o carnaval para longe do centro da cidade. Nunca conseguiram explicar direito essa decisão. Ficou parecendo simplesmente um ato de discriminação. Há tanta coisa esquisita que vai acontecendo na vida sem que paremos para exigir razões consistentes. Teve gente que lavou as mãos por não gostar de carnaval. Teve gente que aplaudiu por não suportar festa, aglomeração, alegria, cultura popular e música. Teve gente que aceitou considerando ser coisa “de pobre, de negro, de povo da periferia mesmo”. Teve quem deu de ombros.
Quantas vezes damos de ombros por dia? Quantas vezes damos de ombros na vida? Por que eu deveria me preocupar com a festa dos outros? Por que eu teria de sair da minha zona de conforto para abraçar os problemas, frustrações e obsessões alheias? Por que eu precisaria emprestar meus ombros para ajudar a suportar as dores do mundo? Eu sempre posso lembrar que os outros não me acudiram quando eu gritei, quando eu sofri, quando eu chorei. E assim, dando de ombros, vamos avançando para o isolamento, o egoísmo e o silêncio social.
Depois veio o carnaval fora de época. Qual o problema? Nenhum. Salvo se a gente pensar no carnaval como um momento orgânico que mexe com o país inteiro numa mesma batida, numa mesma onda, num calendário orgânico. Estou me guardando para quando o carnaval chegar. E o carnaval só chega depois do carnaval, se é possível falar assim. Tudo aquilo que não dá dinheiro, muito dinheiro, deve desaparecer. O Estado mínimo não pode investir em festas. A iniciativa privada faz cálculos e, se a taxa de retorno não lhe parece suficiente, não cai na folia.
Entre consumo e consumição só prevalece aquilo que rende. No carnaval a gente queria se consumir, sambar até se acabar. Mas é preciso que haja consumo, consumação e resultado. Vivemos a era da precificação total. Tudo, como ainda se diz, deve ser calculado na ponta do lápis. Faz sentido. Também, porém, faz sentido perguntar: que sociedade queremos? Qual será o lugar da cultura popular nessa sociedade? O que será do nosso imaginário se ele não for lucrativo?
Agora já não haverá carnaval. Lembraremos um dia dos belos desfiles, das alegorias, dos temas, da força das baterias, do mestre-sala e da porta-bandeira? O carnaval não vai acabar. Não pode acabar. Estamos nos guardando para quando ele voltar? A festa do povo sobreviverá, sofrerá adaptações ou simplesmente esperará o pior passar? Pois, como diz justamente a sabedoria popular, tudo passa, tudo se esvai, tudo escorre pelo ralo, tudo desaparece na poeira do tempo. Só fica aquilo ou aquele que se enraíza na alma de uma cidade.
Quando o samba cala, os buracos falam. Há tantos buracos em nosso caminho, tantos buracos que crescem do nada e viralizam como escuras realidades objetivas numa cidade cuja subjetividade se abala. Como diz a letra, “não deixe o samba morrer/não deixe o samba acabar/o morro foi feito de samba/de Samba, pra gente sambar”. Já tem gente cantando diferente: “Não deixe Porto Alegre morrer/não deixe Porto Alegre acabar/Porto Alegre não foi feita de buracos/pra gente morar”.