Clássico de Herman Melville, "Moby Dick" é adaptado por quadrinista
Francês Christophe Chabouté assumiu estilo característico dos mangás japoneses
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Foi então que a percepção de seus romances mudou drasticamente e as adaptações de suas obras espraiaram-se pelas mais diversas mídias. Peter Ustinov filmou Billy Budd, O Marinheiro em 1962 para refletir as tensões da guerra fria. Bartleby, o Escrivão, adaptado em 1970 por Anthony Friedman e em 2001 por Jonathan Parker, foi enfim reconhecido como a pérola niilista-burocrata-corporativa que é, cada dia mais atual em um mundo globalizado e robotizado. Nada mais justo que sua obra-prima, Moby Dick, levada mais de dez vezes à televisão e ao cinema (desde 1926, em um filme dirigido por Millard Webb), seja homenageada também nos quadrinhos.
A história da baleia branca já havia sido quadrinizada, entre muitos outros, pelo italiano Dino Battaglia (1967), pelo francês Paul Gillon (1983) e pelos norte-americanos Bill Sienkiewicz (1990) e Will Eisner (2001), sendo este o autor de The Spirit (1940) e um dos maiores estetas da história dos quadrinhos, responsável por inovações gráficas que perduram até hoje no formato. A investida mais recente, de 2014, é do francês Christophe Chabouté, publicada agora no Brasil pela editora Pipoca & Nanquim.
Logo no início de Moby Dick, o traço fino e bastante definido de Chabouté se faz notar, lembrando outro mestre francês, Moebius. A modulação da espessura do traço, embora tímida, está lá dando volume aos objetos e criando um dos mais belos efeitos marítimos dos quadrinhos. Por mais que boa parte da trama se passe em alto-mar, a paisagem nunca fica monótona graças à ambientação detalhada dos cenários em planos abertos. Para focar a atenção do leitor, Chabouté economiza traços nos planos médios e closes, alternando as angulações de plongée e contra-plongée.
Como o autor desenha em preto e branco, sem o uso de retículos ou degradê, as imagens são sempre chapadas, trabalhando em cima do forte contraste entre luz e sombra. Em alguns momentos, a cena só é visível a partir da ausência de luz; em outros, o Sol parece ofuscar o leitor. Há diversas sequências de vinhetas em planos abertos nas quais somente a silhueta do navio ou dos personagens é visível ou uma pretensa câmera se mantém fixa enquanto a ação transcorre de um canto a outro em silêncio.
Este, aliás, é um elemento muito bem utilizado pelo quadrinista: o silêncio. Embora boa parte do texto original tenha sido mantido - citações do livro abrem cada capítulo -, não é pequeno o desafio de transmitir sem palavras essa atmosfera inicialmente leve, até cômica, que vai ganhando tons mais sombrios e épicos à medida que o drama se desenrola. Talvez alguém que não seja iniciado na linguagem dos quadrinhos não consiga aproveitar o ritmo cadenciado e os longos silêncios beckettianos que Chabouté imprime para tentar se aproximar da verve filosófica da prosa de Melville. O francês deixa de lado a tradicional sequência frenética "ação a ação" dos quadrinhos ocidentais e assume o contemplativo estilo "perspectiva a perspectiva", mais característico dos mangás japoneses.
É uma excelente solução, mas é claro que a linguagem de Melville é insubstituível, como ocorre com qualquer adaptação. Por isso, a dramaticidade de alguns momentos, especialmente os mais próximos do final, acaba comprometida com a ausência de palavras. Moby Dick é um dos melhores trabalhos de Chabouté, cuja primeira aparição foi em Les Récits (1993), uma antologia sobre o poeta Arthur Rimbaud, mas não é sua primeira adaptação de um clássico literário: o quadrinista de 50 anos, até então inédito no País, publicou Construire un Feu (2007), inspirado em To Build a Fire, de Jack London.
Um de seus destaques é a trilogia Purgatoire (2003-2005), uma biografia em quadrinhos de Henri Désiré Laundru, serial killer e uma espécie de Barba Azul da França, responsável por 11 assassinatos entre 1915 e 1919, mencionado por Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido e inspiração de Charles Chaplin em Monsieur Verdoux. Tão injustiçado em vida, Melville foi tratado como subproduto cultural, tal como, em outros tempos, o jazz, o romance em prosa e a fotografia. Não é por acaso que sua obra tenha sido retratada com tamanha excelência por outra manifestação artística relegada à margem durante muito tempo: os quadrinhos.