Em 'Drive My Car', Ryûsuke Hamaguchi fala de luto, arte e superação

Em 'Drive My Car', Ryûsuke Hamaguchi fala de luto, arte e superação

O longa-metragem, concorrente ao Oscar, estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta-feira, dia 17

AE

'Drive my car' reflete sobre o luto, a arte e a necessidade de seguir adiante

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Ryûsuke Hamaguchi estava em um voo entre Tóquio e Berlim, onde participaria do júri do festival de cinema, quando saíram os concorrentes ao Oscar. Além da esperada indicação para melhor produção internacional, seu 'Drive My Car' estava entre os finalistas nas categorias melhor roteiro adaptado, direção e filme - um feito inédito para um longa japonês. Quando ele desembarcou na Alemanha, havia dezenas de mensagens em seu celular. "Foi como se tivesse entrado em um mundo diferente", disse Hamaguchi ao Estadão, por videoconferência. "Mas este é o mundo em que estou vivendo, então estou tentando aproveitar e me sinto feliz de estar aqui." Drive My Car estreia nos cinemas do Brasil nesta quinta-feira, 17, e chega à Mubi no dia 1º.

As indicações para 'Drive My Car' logo despertaram comparações com o sul-coreano 'Parasita', que em 2020 levou quatro Oscars (filme, direção para Bong Joon Ho, roteiro original e produção internacional). Os dois, afinal, vêm do mesmo continente e começaram sua carreira internacional em Cannes, com 'Parasita' ganhando a Palma de Ouro, e 'Drive My Car', o prêmio de roteiro.

Mas não poderiam ser mais diferentes. Enquanto 'Parasita' mistura drama, comédia e suspense para falar dos efeitos do capitalismo em uma família, tudo embalado no pop, a obra de Hamaguchi medita sobre o luto, a arte e a necessidade de seguir adiante e se desenrola discretamente e a seu tempo - são três horas de duração. Essa combinação faz com que a proeza das quatro indicações para 'Drive My Car'pareça ainda maior.

No longa, Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um ator e diretor convidado para fazer uma montagem de Tio Vânia, de Anton Chekhov, em Hiroshima. A contragosto, ele aceita que seu precioso carro, um Saab vermelho, seja dirigido pela jovem Misaki Watari (Tôko Miura). Os dois são calados, mas, aos poucos, começam a conversar sobre suas perdas. A mulher de Yûsuke, Oto (Reika Kirishima), morreu há pouco tempo, deixando um mistério e a dor.

Hamaguchi é modesto, creditando o sucesso do longa aos atores e à equipe, bem como ao material original do astro da literatura japonesa Haruki Murakami. O cineasta de 43 anos tinha lido o conto 'Drive My Car' que faz parte da coletânea 'Homens Sem Mulheres', publicado no Brasil pela Alfaguara, com tradução de Eunice Suenaga, na época de sua publicação. Mas foi seu produtor, Teruhisa Yamamoto, grande fã do escritor, quem sugeriu que Hamaguchi adaptasse alguma obra de Murakami.

VERSÃO

Sabendo da relutância do autor em ceder os direitos, decidiram que o melhor seria fazer uma versão de um dos contos. O diretor sugeriu 'Drive My Car'. "Quando li a história, eu era um cineasta independente. Não havia possibilidade de ter o orçamento necessário", disse Hamaguchi, sobre o filme feito com US$ 1,3 milhão (cerca de R$ 6,6 milhões). "Mas há algo muito único nesse espaço fechado do carro, em que você conversa sem olhar para o outro, que permite uma abertura maior, uma conversa íntima."

Hamaguchi tinha passado por experiências assim, principalmente quando filmou seus documentários na área atingida pelo terremoto, tsunami e desastre nuclear em 2011. Fora isso, o conto trazia uma discussão sobre a performance. Tio Vânia é só uma citação na história de Murakami. O cineasta ampliou a presença da peça por achar que seu protagonista lida com as mesmas questões que os personagens da obra de Chekhov. Sem saber como filmar o ensaio de uma montagem, decidiu incluir o seu método: os atores são convidados a ler o texto, sem emoção, repetidamente, até que as palavras e os diálogos estejam internalizados.

É por meio das conversas com Misaki, as divergências com o ator Koshi Takatsuki (Masaki Okada), ex-amante de sua mulher, e a montagem da peça que Yûsuke se reencontra consigo mesmo e encontra um caminho adiante. "A arte é necessária",afirmou Hamaguchi, que incluiu no filme elementos de dois outros contos do mesmo livro, Sherazade e Kino. "É um refúgio para a alma, uma zona de segurança. Mas também há um mistério na arte, algo que não pode ser explicado."

No filme, o mistério também existe no outro. "Acredito ser impossível conhecer o outro completamente", observou o cineasta. "Na verdade, me parece impossível até mesmo que nos conheçamos a nós mesmos verdadeiramente. E isso é algo com que temos de lidar." A ficção, para ele, serve justamente para oferecer um alento. "É importante mostrarmos nos filmes e em outras obras que não há como superar essa e outras dores ou escapar delas, mas dá para encontrar a esperança que nos permitirá viver."

A filmagem durante a pandemia deixou essa convicção ainda mais evidente. Hamaguchi tinha completado dois dos três episódios de Roda do Destino, o outro longa que lançou em 2021, premiado em Berlim, e estava começando Drive My Car quando a pandemia fechou tudo. Busan, na Coreia do Sul, que seria a locação, foi substituída por Hiroshima. "Hesitei, porque a cidade carrega um peso enorme para os japoneses. Temi que houvesse uma ressonância muito grande com os assuntos do filme", contou. "Mas encontrei uma cidade muito vibrante, que foi redesenhada para a busca pela paz. No fim, Hiroshima ofereceu uma conexão com o tema maior do longa: a recuperação após a destruição no caso de Hiroshima e a reconstrução depois da perda no caso dos personagens."

NA HORA

Inevitável também é acreditar que 'Drive My Car' chegou na hora certa, quando a perda coletiva provocada pela pandemia trouxe ainda mais força à história de luto e de superação. O filme foi abraçado pelos críticos desde Cannes, onde foi escolhido o melhor filme da competição pela Federação Internacional dos Críticos de Cinema, e depois pelas associações de Nova York e Los Angeles, impulsionando sua candidatura ao Oscar. Nas últimas semanas, o longa levou o Bafta, o Film Independent Spirit Award e o Critics Choice para produções em língua não inglesa. Drive My Car chega à cerimônia do Oscar, no próximo dia 27, como favorito absoluto, pelo menos na categoria filme internacional. É um alento e, quem sabe, um sinal de que a Academia vem mesmo se transformando nos últimos anos que um drama sem pressa, discreto, de longa duração, seja o provável ganhador da estatueta dourada.


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