Grãos de areia na engrenagem

Grãos de areia na engrenagem

Em "Morte Sul Peste Oeste", André Timm aproxima os diferentes em sociedade intolerante

Henrique Massaro

"Morte Sul Peste Oeste", publicado pela editora Taverna, é finalista do Prêmio Minuano

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Veja este homem. Você já passou por ele nas esquinas do centro ou em sinaleiras movimentadas. Talvez ele estivesse pedindo algo ou tentando lhe vender alguma coisa, mas você não memorizou sua fisionomia. Não o conhece. Não sabe seu nome, sua história, tampouco. Vez que outra, você pode até ter se compadecido, e, então, por alguns instantes, ter se questionado sobre o que levou esse sujeito a largar tudo e acabar nessa situação. Mas, você bem sabe, também houve vezes em que sequer o notou, ou até mesmo o considerou um estorvo, mais um homem sem rosto e sem nome que trancou seu caminho na calçada. Um grão de areia que, jogado ali, desacelera uma engrenagem, mas é incapaz de fazê-la parar de girar.

Em “Morte Sul Peste Oeste”, romance de André Timm publicado no ano passado pela editora Taverna e finalista do Prêmio Minuano de Literatura 2021, o nome do homem é Dominique Baptiste Monfiston. Sua história é única, tem suas singularidades e dramas individuais, mas encontra semelhanças com muitos outros homens e mulheres que, como ele, se viram obrigados a deixar seus países e tudo o que lá haviam construído. São pessoas que “não tiveram outra escolha a não ser deixarem de ser”, escreve Timm logo nas primeiras páginas, num primeiro capítulo onde cada palavra escrita se assemelha à lente de um cineasta em lento movimento de aproximação. Primeiro, num grande plano aberto que capta a paisagem desértica de uma região fronteiriça, depois, revelando detalhes do veículo em travessia e alcançando o objeto em destaque – um dos homens sendo transportado de sua terra natal –, e, por fim, parte das emoções que tomam conta de seu interior neste momento decisivo, sem volta.

O país que Dominique deixa para trás é o Haiti assolado pelo terremoto de 2010. Sofrendo de uma perda pessoal após a tragédia nacional que vitimou mais de 300 mil pessoas e precisando encontrar meios de garantir a sobrevivência da família em Porto Príncipe, Dominique vê o Brasil como a terra prometida. Veste com orgulho uma camisa da Seleção Brasileira da Copa de 1994. É fã de Bebeto, o dono daquele número 7 estampado nas costas. Assim que chega a Brasileia, na fronteira do Acre com a Bolívia, no entanto, tem a primeira prova de que o sonho brasileiro anunciado por algum devaneio capitalista se aproxima mais de pesadelo. Já na primeira noite em território brasileiro, Dominique sofre ataques xenófobos e perde os documentos que lhe garantiriam trabalho em uma empresa no Paraná. Rapidamente, lhe é oferecida como única opção de destino uma Chapecó sedenta por mão de obra. Como Dominique, a cidade do Oeste catarinense parece precisar de trabalho acima de tudo, inclusive de direitos trabalhistas básicos.

Interrompamos aqui, brevemente, a história de Dominique, para introduzir outra trama, porque é exatamente isso que André Timm faz. Após três capítulos – sempre sucintos e carregados de realismo – acompanhando o início da jornada do haitiano, o autor nos transporta para o ponto de vista de outra personagem inserida na mesma Chapecó em um contexto diferente. Pelo menos, é o que parece. Brigite, a outra figura central do romance, é uma menina transexual de 13 anos que vive nos retalhos de uma estrutura familiar. O pai abandou a família, a mãe é dependente química e Brigite se prostitui mantendo uma relação com um criminoso local. Enquanto tenta economizar dinheiro para sua operação de mudança de sexo, cultiva o sonho de se tornar cineasta.

A maior parte da prosa mantém a alternância entre os dois. Antes que as duas histórias se cruzem, como vai sendo indicado no decorrer do livro, as semelhanças entre Dominique e Brigite vão se tornando aparentes. Há, talvez, uma grande zona cinza onde quem sofre com o preconceito – seja por sua origem ou seu gênero – se encontra de alguma forma. Cabe ao bom ficcionista a destreza para construir personagens verossímeis e provar que a literatura é o exercício artístico que mais consegue colocar o público na pele do outro. É o que faz André Timm durante todo o romance, com a liberdade que a arte ainda garante, mas com o cuidado e o respeito que certas temáticas demandam.

Além da leitura e da pesquisa sobre os assuntos abordados, o autor, natural de Porto Alegre e radicado em Chapecó desde 2004, acompanhou o movimento de chegada de imigrantes na cidade ao longo da última década e entrevistou haitianos para compor a história. Com relação à pauta da transexualidade, o cuidado também foi de submeter o livro a uma leitura sensível que apontou aspectos que poderiam ser mais bem trabalhados em Brigite. A discussão de lugar de fala, crescente nos últimos anos, torna-se inevitável no caso de romances como o de Timm, que é do entendimento de que, apesar de algumas visões radicais, a maioria das pessoas aceita que se escreva de uma posição que não é a sua, contanto que a responsabilidade de não se incorrer em clichês e estereótipos aumente. “Às vezes, as histórias vêm e a gente tem a necessidade de contá-las. Às vezes, isso vem com tanta força que dói abrir mão. Eu não gostaria de não ter contado essas histórias por, de repente, entender que esse não era meu lugar de fala, prefiro assumir as consequências disso e, de repente, errar, ter consciência da responsabilidade do que eu estou fazendo, mas, ainda assim, contar essas histórias”, diz o escritor.

A camisa de Bebeto, uma das únicas roupas que Dominique veste, vai ficando mais e mais puída à medida que as engrenagens desenhadas por Timm começam a se mover. No caso dos estrangeiros inseridos na Chapecó de “Morte Sul Peste Oeste”, elas estão representadas por uma rotina exaustiva, na qual todos os detalhes precisam funcionar perfeitamente, mas as variáveis para que dê tudo errado são muitas. Além das poucas roupas, dos escassos recursos financeiros e da estrutura precária do alojamento onde os haitianos se instalam, diariamente eles têm a prova de que não são bem-vindos no sistema do qual dependem. Há o motorista de ônibus que não para o veículo e os faz perder o dia de trabalho, a população que os vê de cima para baixo e até grupos organizados que promovem ataques diretos, mas, principalmente, há o grande frigorífico.

Assim que assumem seus postos na linha de produção, não há tempo para pensar ou sentir. A engrenagem assume a forma de uma esteira que, durante todo o expediente, envia aves que precisam ser fatiadas em movimentos idênticos e constantes pelos homens que, diferentemente da máquina, desaceleram, perdem força, desenvolvem lesões por esforço repetitivo, sentem dor e, inevitavelmente, vão ao chão. Quando “levam vareio”, são substituídos por outros trabalhadores que, num futuro próximo, também perderão para a esteira. É uma questão de tempo. Na chamada linha de corte, a força da engrenagem repele todos os grãos de areia.

Na região que foi um dos epicentros da ascensão da extrema-direita brasileira nos últimos anos, Brigite é também um corpo estranho sendo expelido. Enquanto personagem, é composta de muitas diferenças de Dominique, a começar pela voz ativa. Com aspiração de produzir filmes, documenta e expõe parte das injustiças e agressões que sofre e presencia. Já Dominique praticamente não tem aspas durante todo o romance. Suas falas surgem sempre em discurso indireto, numa escolha consciente do autor de emular a falta de voz dos estrangeiros naquele contexto. A mesma sociedade que vai se tornando inóspita para ambos, até finalmente ejetá-los, também acaba aproximando-os. “Alguém, em algum momento, fez uma analogia muito boa que uso sempre, que o Dominique e a Brigite, os dois são estrangeiros, mas um fora da própria terra e outro fora do próprio corpo”, comenta Timm.

Em meio a tanta intolerância e a um realismo duro, o escritor encontra, em diversos aspectos, espaço para sensibilidade na travessia desses dois personagens tão únicos, mas que representam dores e lutas atuais. Dominique e Brigite, como bem define Paulo Scott na contracapa do romance, são “dois polos-siameses de uma mesma redenção”, e você, leitor, termina o livro finalmente olhando para essas pessoas que talvez um dia tenha ignorado, cuja marginalidade, em algum momento, talvez tenha normalizado. Percebe que, pelo menos na literatura, dois grãos de areia têm força para parar a engrenagem. Você vê o homem, e também a menina, e agora sente que os conhece.


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