Joca Reiners Terron e o que vem depois do fim

Joca Reiners Terron e o que vem depois do fim

Barbárie derruba os últimos pilares da civilização em novo romance "O Riso dos Ratos"

Henrique Massaro

Ficção de Joca Reiners Terron é pós-apocalíptica e assustadoramente atual.

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Diagnosticado com uma doença terminal, um homem promete se vingar do abusador de sua filha. A premissa é curta e simples, mas descortina temas e tramas capazes de deixar desconcertados até mesmo os leitores mais assíduos de Joca Reiners Terron. Preso à sua condição de saúde e obcecado com a promessa que se tornou a única noção de sentido para os dias que lhe restam, o protagonista sem nome de “O Riso dos Ratos” não percebe a metrópole igualmente inominada em que vive e o mundo ao seu redor desmoronarem. Uma doença chegou, matou parte da população em seus primeiros surtos e deixou a civilização esfacelada. Chacinas, guerras, milícias e todo tipo de barbárie marcam o cenário de desolação que será descoberto ao longo de um romance que, por mais pós-apocalíptico que seja, também se mostra assustadoramente atual.

Engana-se, no entanto, quem logo colocar o romance lançado pela Todavia na prateleira de obras diretamente inspiradas pela pandemia do coronavírus. “O Riso dos Ratos” começou a ser concebido muito antes da quarentena, em um diário escrito em 2012 durante um período de abstinência forçada do autor por questões de saúde. “E se um sujeito estiver tão obcecado por um problema pessoal qualquer que não percebesse o fim do mundo ao redor dele?”, questionou-se Terron enquanto escrevia as primeiras linhas. A pergunta lhe veio como um símbolo do que já vinha acontecendo na época: a perpetuação de um pensamento obscuro tomando conta do país sem que boa parte da sociedade assimilasse até que fosse tarde demais.

Pouco se sabe sobre a doença que acometeu o mundo enquanto o protagonista de “O Riso dos Ratos” padecia em seu apartamento. O autor não se preocupa em explicar seus sintomas ou suas consequências. A febre, como é resumida, é apenas o estopim para o que vem quando não há mais depois, para o que acontece com o ser humano preso ao presente e sem possibilidade de futuro. “Muito do que alimentou meu desejo de escrever o livro foi essa sensação que a gente começa a perceber no discurso público, de que estamos retrocedendo, perdendo direitos sociais, vidas, essa percepção de que estamos a um passo da barbárie”, explica Terron.

Em terceira pessoa, a narrativa é mantida no pretérito, sempre próxima e limitada à visão do protagonista, que desvenda o que sobrou do mundo junto com o leitor. Trata-se de um homem sedentário, um acumulador de quinquilharias, preso ao longo de todo o livro a uma promessa de vingança alicerçada em valores masculinistas típicos de sua geração, mas incompatíveis com sua natureza resignada. Depois de finalmente perceber os sinais de que algo de errado acontece além de suas quatro paredes e resolver sair do apartamento, acaba preso do lado de fora, em uma cidade que, apesar não ser nominada, é uma São Paulo em ruínas. “Aquele mundo já não era o de antes e muito menos o seguinte”, diz um trecho do romance que explica a ideia do que pode acontecer após o fim de tudo. Quando não se pode mais olhar para frente, virar-se para trás parece a única opção.

Aqui, vale uma observação especial sobre o tempo, tema essencial da ficção de Joca Reiners Terron – como, em certa medida, é de toda a literatura. Em “A Morte e o Meteoro”, lançado em 2019, os indígenas kaajapukugi, por exemplo, acreditam num tempo cíclico, noção que acaba conduzindo boa parte da narrativa. Já em “O Riso dos Ratos”, nos deparamos com diversos torvelinhos – um rato girando na enxurrada, um inseto que se afoga em espiral, o gelo rodopiando dentro de um copo – que aprisionam o protagonista. “Os personagens estão presos a esse presente, então, a noção de futuro foi abolida e o único lugar ou norte que existe para se guiarem é o passado”, comenta o autor. Sempre nessa direção, o que acontece é uma repetição do processo colonial brasileiro ao contrário, como já adianta o próprio sumário do livro. O quilombo, a grande plantação, os escravizados no porão do navio, tudo virá novamente, às avessas, até que o retorno se complete.

As circunstâncias epidemiológicas parecem ter feito o interesse mundial pela literatura distópica voltar a crescer. Após entrar em domínio público, o clássico “1984”, de George Orwell, por exemplo, ganhou diversas novas edições e traduções, seguindo um fenômeno de vendas. Mas no Brasil de 2021, um país assolado pela pandemia, onde milhões vivem na miséria e serviços básicos como saneamento são um privilégio, pensar a distopia como um subgênero literário possível pode ser um exercício complexo. “Nós somos a distopia”, afirmou Terron à RFI, em setembro do ano passado, quando “A Morte e o Meteoro” foi traduzido para o francês. O romance narra a saga dos últimos integrantes de uma tribo isolada do homem branco e próxima da extinção em um futuro não tão distante em que a Amazônia foi reduzida quase a um deserto.

Cerca de oito meses após a entrevista do autor à imprensa francesa, a noção de caos nacional aumentou. O Brasil já passa das 450 mil mortes por Covid-19 e a vacinação é indiscutivelmente mais lenta do que deveria, para citar apenas exemplos ligados à saúde. “Penso que uma distopia se dá muito no plano em que certo grau do utópico se realizou, e aí a distopia se instala para desarmar aquilo, mas a única utopia que teve aqui foi no período pré-colonização”, reflete o autor. Mais do que distópica, a ficção de Joca Reiners Terron pode ser definida como pós-apocalíptica. E também espantosamente profética.

Após a publicação de “A Morte e o Meteoro”, por exemplo, o desmatamento da Amazônia e os ataques a povos indígenas ficaram mais evidentes. Coincidências mórbidas diretas com história também acabaram acontecendo: no ano passado, um funcionário da Funai morreu após uma flechada de um indígena de uma comunidade isolada que tentava proteger, semelhante ao que ocorre no livro com o sertanista Boaventura, que, na ficção, sobrevive. Já o processo de concepção de “O Riso dos Ratos” não só antecede grandes problemas como uma pandemia, mas antecipa situações menores e quase idênticas à realidade. O Futurama, supermercado abandonado próximo ao apartamento do protagonista, onde se passa boa parte da narrativa, é um estabelecimento de uma pequena rede de São Paulo que ficava localizado em frente à casa do autor e que faliu durante a escrita do romance.

Em certos aspectos, o novo livro pode ser considerado ainda mais perturbador do que o anterior. O fim do mundo que conhecemos se dá no coração de uma grande metrópole, em um local mais próximo da maioria dos leitores do que as profundezas da Amazônia. Não há subterfúgios à vista e, por mais que a barbárie seja levada às últimas consequências, é impossível enxergá-la como algo distante. Crueldades de todo tipo que, em certo nível, já acontecem nas beiradas da sociedade são elevadas à enésima potência, trazidas para o centro e esfregadas em nossa cara. Não há como fugir, muito menos negar. “Nasceu, f..., essa é a lei”, anuncia um personagem tirânico de “O Riso dos Ratos”.

Alegoria de uma realidade sufocante, o soco no estômago de cada virada de página mostra a fragilidade da civilização. “Somos uma sociedade a meio caminho, o processo civilizatório aqui foi um ensaio, mais fantasioso do que verdadeiramente concretizado, e vemos isso no dia a dia”, comenta Terron, que também cria uma história envolvente, apesar de duríssima, com pausas reflexivas que proporcionam ao leitor momentos de respiro. Assim como a trama geral leva ao retrocesso, o protagonista também se encontra em seu próprio processo regressivo. O homem, que viu a filha pela última vez após horrorizá-la com a brutalidade da promessa de matar seu agressor, acaba enxergando-a em quase todas as mulheres que encontra e se vendo cada vez mais apegado às memórias relacionadas a sua infância. Além da vingança, o único lugar possível de se habitar nas condições subumanas em que se encontra é a lembrança.

Após o diário de 2012, Terron escreveu, em 2017, as primeiras páginas de um possível romance, mas elas foram descartadas. O narrador tinha sempre um tom de ironia incompatível com a história e o autor recomeçou. Pela primeira vez, escreveu um romance inteiro à mão, enchendo dois cadernos. “Sinto que é hora de sentar e escrever propriamente os livros quando essas histórias acalentadas durante um tempo se cruzam com a realidade, com problemas e questões prementes, e foi um pouco isso que aconteceu”, explica, definindo o processo como poroso. As ideias são contaminadas pela realidade e a literatura reflete nosso tempo. “Não consigo fazer ficção escapista”, conclui Terron. Não há, de fato, como escapar.

FICHA TÉCNICA:

O RISO DOS RATOS

Autor: Joca Reiners Terron

Editora: Todavia

Páginas: 208

Valor: R$ 62,90 (papel); 39,90 (e-book)

Live de lançamento: 8 de junho, às 18h30min, com o autor, Juliana Borges e mediação de Regina Dalcastagnè, no canal da Todavia no YouTube


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