O poder das palavras

O poder das palavras

Hoje eu procuro nas palavras que escrevo uma forma de me reaproximar do campo que deixei, das coxilhas verdejantes da antiga Vila Rica

Paulo Mendes

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O tropeiro atou o cabresto do mouro numa trama, debaixo dos cinamomos, puxou a gateada e o bragado para o lado, afrouxou os arreios e caminhou devagar para o bolicho. Na porta, tirou o chapéu e sentou-se no banco de tábua. Mostrava tanto cansaço como os animais. Era um homem velho, com barba de uma semana, e havia meses que não cortava as melenas já brancas. Ficou ali, tomando um aperitivo de cachaça com bitter, calado, olhando a estrada real. Chamava-se Amado Constâncio. No segundo e último copo, me atrevi a perguntar se tinha acontecido algo, porque estava tão calado. “É melhor falar pouco, amigo Paulinho, quando estou triste ou brabo falo menos ainda. Nessas horas costumo dizer coisas que não devo.” Uma hora e pouco depois, ele montou no mouro e largou de tiro rumo ao Cerro Azul, onde tinha um rancho numa pequena chácara, um lagoão na frente, duas vacas de leite, umas ovelhas, cinco cachorros e um gato preto. Antes de dobrar na Esquina Maboni, deu de rédeas e voltou a galope. Esbarrou na porta do bolicho e gritou sem apear: “Escreva sobre a palavra, a palavra condena ou salva...” 

Hoje, meus amigos, nem sei se o seu Amado disse mesmo aquilo ou sonhei que tenha dito. Agora, na verdade, pouco importa. Lembrei-me desta passagem curiosa dias atrás, quando participei do Congresso Nacional do Livro On-Line, o Poder das Palavras, em uma conversa animada com as jornalistas Simone Lopes e Ivania Backes. Foi um evento interessante, no qual abordamos a procura incessante pela palavra, desde os segredos dos hieróglifos dos egípcios, o fascínio da escrita cuneiforme dos sumérios, o enigma da pedra de Roseta, as inscrições na Ilha de Páscoa, o eslavo, o grego, o latim e por aí afora.

Desde a antiguidade, o homem vem se esforçando para obter uma forma de comunicação perfeita. Foi a linguagem que proporcionou a evolução da humanidade e suas conquistas. Ao mesmo tempo, por contradição, se a língua salva, ela pode também se tornar a própria perdição da raça humana. Não é mesmo?
Hoje eu procuro nas palavras que escrevo uma forma de me reaproximar do campo que deixei, das coxilhas verdejantes da antiga Vila Rica, tudo o que ficou lá, dormindo na memória. O maquinário das granjas inverteu as cores, a grama forquilha e o trevo deram lugar às lavouras, mas ainda, aqui e ali, se encontra um capão de mato, um potreiro que resiste ao tempo, guardando os ninhos de quero-queros. E as árvores nativas, já tão poucas, onde pousam os bem-te-vis, os sabiás e os rabos-de-palha. 

É nas palavras que me redimo com o lugar onde cresci, onde aprendi a amar o torrão pampeano, a compreendê-lo e a preservá-lo a todo custo. São essas “Campereadas”, que publicamos desde 2009, que me levam de volta para lá. De novo, em um outro sonho, chego montado no Tostado, só com um pelego no lombo e apeio no antigo bolicho. No meio da lavoura de soja, olhando para a tapera, digo: “Sou eu, minha terra, o guri bolicheiro, retorno para cumprir o pedido e a profecia do peão de tropa. Somos nós, eu e minha alma, mais as palavras bem ditas. Voltamos para nos salvar, para atiçar o fogo do borralho e tudo recomeçar. Sou eu, seu Amado, agora o tropeiro, aquele que reponta as palavras no rumo da eternidade.


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