O que se perde na estrada

O que se perde na estrada

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As percepções que temos de todos os fatos da nossa vida são apenas parciais. Na verdade não "vemos" a maior parte daquilo que acontece ao nosso redor. Ainda bem. Se víssemos tudo, credo, se conhecêssemos essas vicissitudes, meu Deus, não teríamos num um minuto de paz e serenidade nesta curta vida, não teríamos nem sonho, nem esperança, desventuras nem alegrias. Pelo simples fato de que saberíamos de antemão tudo o que iríamos viver. Ou seja, não teria graça nenhuma. Em compensação, por a vida ser assim, imprevisível, cada dia é uma espécie de aventura, nem sabemos se vamos acordar vivos. Se acordamos, não sabemos se terminaremos o dia. Tudo é uma incógnita e é nesse desconhecimento que reside o mistério de nosso viver.

Foi o que aconteceu com o Mariano. Depois de caminhar mais de 15 quilômetros pela estrada que levava da sua casa, no interior do município até a sede da Vila Rica, decidiu descansar o corpo cansado embaixo da vasta ramada de uma frondosa paineira, à beira da estrada. Nos dois dias anteriores, o Mariano havia trabalhado muito fazendo taipas numa lavoura de arroz. Cansado daquela vida nas várzeas do Toropi, decidiu pegar suas coisas (na época, cabiam tudo numa trouxa) e procurar sua tia que tinha um comércio de roupas na cidade. As coisas poderiam ter mudado completamente, quando Joana, filha de um fazendeiro, o viu dormindo profundamente. Ela ficou encantada com o rapaz, no rosto calmo e sereno. Pensou em acordá-lo, mas como estava sozinha, não achou de bom tom e decidiu ir embora. Montou em seu selim, e ficou pensando nele muitos anos.

Cerca de quinze minutos depois, o Dr. José Antônio e sua esposa decidiram parar a caminhonete Rural exatamente naquele sítio. A senhora, já avançada nos anos e ainda sem filhos, viu o rapaz na plenitude de seu sono e chamou o marido. Disse-lhe, veja que lindo guri, quem sabe não podia ser o filho que tanto queríamos e nunca podemos ter. O doutor, um homem que era abastado, cheio de posses, parou, pensou e depois explicou à esposa que não era conveniente, vai que aquele jovem fosse uma pessoa de índole ruim, que viesse trazer problemas ao casal. "Se até agora não tivemos filhos, porque arriscar?", disse o doutor. Depois foram embora e nunca mais tocaram no assunto.

pois nem bem saíram do local, aparecem uma dupla de ladrões famosos e veem Mariano ali, despojado e cobiçaram sua trouxa. Um deles ficou com a faca sobre o coração do rapaz e o outro se decide pegar o embrulho. Mas nesta hora um cachorro perdigueiro aparece e os larápios se assustam. "Deve ser um caçador por perto". E esse detalhe salvou a vida do nosso herói.

Nestas três ocasiões a vida de Mariano poderia ter mudado, para melhor ou para pior. Quem sabe?  Conosco também é assim, fatos passam por nós raspando, e , por um triz, não influenciam. E outros vêm e buuum... trocam tudo de lugar, anarquizam, esculhambam e nos transformam em outras pessoas. E o Mariano? Bem, o Mariano acordou logo depois, tranquilamente, lavou o rosto no açude ao lado e seguiu seu caminho. Sem saber de nada disso que poderia ter alterado seu destino. Poderia, mas não ocorreu.  Nós somos o resultado de um montão de coisas que poderiam ter sido e não foram.

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