O sangue do Zé Mulato

O sangue do Zé Mulato

Disseram que se atracaram na carpeta no meio da tarde e perto da meia-noite, sob a luz de um candeeiro, o Castelhano começara a trapacear

Paulo Mendes

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Primeiro havia se formado uma poça ovalada de um palmo e pouco de circunferência com o sangue coagulado, escuro, quase preto. Depois, se desgrudou, em um fio que escorreu no chão batido do terreiro paralelo a uma raiz levantada de cipreste e passou ao lado da porteira que dava para o piquete; porém, por causa de um cupim abandonado, dobrou à direita e seguiu em direção ao galpãozinho de barro e de zinco, que tristemente seguia de pé ao lado do bolicho, onde às vezes, nos invernos brabos, cães vadios vinham gemer de frio. O sangue seguiu por vários metros, fazendo curvas, nunca em linha reta, como a própria vida do Zé Mulato, tão atribulada, um andarengo, um diabo rengo. A cena do crime indicou ao comissário Silveira, que fora chamado àquela ocorrência, que o golpe atingira uma veia importante, um corte profundo, provocado por um objeto cortante potente, uma arma branca. No caso, uma adaga de aço grosso, afiada e pontuda, sempre usada para sangrar bois num matadouro improvisado no Rincão do Ivaí. 

Foi assim, que não me esqueço: há muito andavam falando na destreza nas cartas de um tal de Castelhano, um xiru ladino que aparecera um belo dia na Vila Rica, sem saber de onde, nem dava muitos informes. Nas vezes em que entrou em nosso bolicho, dona Mirica avisou. “Nada de cartas, aqui não quero jogo”. Ele fazia cara feia, resmungava e saía. Andava num jipe velho, trazia à mostra uma adaga prateada na cintura, um colete com uma rosa vermelha bordada, um dente de ouro na boca e uma guaiaca repleta de moedas. “Não gosto de homem enfeitado, tem fedor de morte”, dizia a velha bolicheira. 

José Antunes da Silva, O Zé Mulato, era carvoeiro. Tinha quatro fornos para os lados do Passo dos Buracos, dentro de uma chácara que a mãe deixara. Por tanto vender carvão, ficara mais preto do que realmente era. Não gostava de ser chamado de negro, no máximo, mulato. Era nosso amigo, um homem de meia idade, solteiro, boa praça, apreciava jogar bocha e cartas. Um dia disse que iria topar umas paradas com o Castelhano, a quem chamava de “calaveira”. A mãe até que tentou demovê-lo da ideia. “Nem chega perto desse ladino, cuida da tua vida”. O Mulato desdenhou. “É um tipo conversador, cachorro que muito late, vou ganhar, não deixo que ele me roube.” 

Passaram-se muitos meses, acho que quase um ano, quando chegou a notícia. Era um domingo de manhã, logo ao acordar, ainda estava lavando a cara na velha bacia alouçada quando a mãe disse que “mataram o Mulato”. Tinha sido na noite anterior, no bolicho do Crescêncio, no Abacatu. Disseram que se atracaram na carpeta no meio da tarde e perto da meia-noite, sob a luz de um candeeiro, o Castelhano começara a trapacear. O Mulato percebera e soltara um grito de desacato. Parece que foi um golpe certeiro. O Castelhano sumiu no mundo, o Mulato foi enterrado, o inquérito foi aberto, o autor nunca encontrado. Ficou o dito pelo não dito. Restou a poça que eu vi naquele domingo. Fomos eu, o pai e dois vizinhos buscar o corpo de charrete. Na época, eu era apenas um guri. Foi meu primeiro contato com a morte. Depois vieram tantos outros, cruzes. Nunca me esqueci dos olhos, do pescoço aberto pelo talho, do sangue ressecado, e daquela vida que se findou num bolicho de campanha. 


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