Ana Lúcia Araujo: "A emergência da democracia liberal convive com a escravidão nas Américas"

Ana Lúcia Araujo: "A emergência da democracia liberal convive com a escravidão nas Américas"

Para historiadora, maior erro da educação foi perpetuar a ignorância sobre a história do continente africano e sobre a história da escravidão

Eric Raupp

Sua próxima publicação, ''Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past'', será lançada no segundo semestre deste ano.

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Os protestos que seguiram a morte de George Floyd nos Estados Unidos atravessaram as fronteiras e os limites do tempo para propor uma revisão da forma como o passado é lembrado. Professora titular no Departamento de história da Howard University (Washington DC) e membro do comitê científico do projeto “A Rota do Escravo”, da UNESCO, Ana Lúcia Araujo estuda a história da escravidão e o comércio atlântico de escravos. Em entrevista ao Correio do Povo, ela analisa os seus legados do colonianismo e analisa que os debates atuais sobre a escravidão e tentativas de chegar a um acordo com o passado. Seu livro mais recente é "Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History" (2017), e sua próxima publicação, "Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past'', será lançada no segundo semestre deste ano.

Correio do Povo: Existe relação entre escravidão e democracia?
Ana Lúcia Araujo: 
A escravidão atlântica emerge nos primórdios do que se chama modernidade, com o desenvolvimento do capitalismo mercantil. Tanto o comércio atlântico de escravizados como a instituição da escravidão que se desenvolve nas Américas cobriram quase quatro séculos. Nesse contexto cabe lembrar que a emergência da democracia liberal convive com a escravidão em boa parte das Américas, até seu declínio durante o século XIX. A contradição entre democracia liberal e seus supostos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade levantados pela Revolução francesa foi exatamente a combinação que colocou a escravidão em cheque pela primeira vez com a Revolução de Saint-Domingue que começa no final do século XVIII, quando o movimento abolicionista já tinha começado a se desenvolver, e finalmente é vitoriosa em 1804, com o nascimento do Haiti, agora independente da França e livre da escravidão. O que é central aqui é o sistema capitalista que já no longo período em questão se construía também sob a divisão entre negros e brancos e norte e sul.

A escravidão que emerge com a chegada dos europeus nas Américas é diferente da escravidão que existiu na Antiguidade e da escravidão que existia no continente africano. Primeiro porque a escravidão atlântica que deriva das trocas comerciais entre a Europa, a África e as Américas colocou o africano e seus descendentes como o outro absoluto. O sistema que se estabelece como o nascimento desse “mundo atlântico” não tem nada de trivial. Se trata da maior deportação transoceânica forçada da história. Se o objetivo inicial do comércio atlântico de escravos foi fornecer mão-de-obra para as plantações das Américas, se trata da primeira vez em que um determinado grupo de indivíduos vindos do continente africano passam a ser escravizados. Se a escravidão existia na Grécia, Roma ou Egito, pessoas negras oriundas do continente africano representavam uma ínfima minoria entre a população escravizadas nessas sociedades. Enquanto nas Américas, mesmo se nas primeiras décadas da colonização europeia os indígenas foram escravizados, a condição legal de escravo passa a ser associada com ser negro, dando lugar a um processo de racialização, que, de grosso modo, permite o desenvolvimento de uma ideologia da supremacia branca e também do racismo.

Correio do Povo: Recentemente tivemos, em diferentes países, a derrubada de estátuas de personalidades que estiveram ligadas, de variadas formas, a práticas racistas. Isso não é nenhuma novidade e já vimos desde a exigência de renomear ruas a protestos contra monumentos a Confederados. Há quem advogue pelo envio desses monumentos a museus, pela destruição delas ou pela sua manutenção, com uma melhor contextualização. O quão problemáticas são essas edificações?
Ana Lúcia Araujo: 
Os monumentos homenageando homens historicamente identificados como brancos que defenderam a escravidão, comercializavam escravizados ou que representaram o colonialismo nas Américas ou na Europa tem sido alvo de protestos há várias décadas tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra. Acho que nós historiadores não estamos em posição para prescrever o que fazer com os monumentos. Mas o debate sobre os monumentos nos ajudam a entender como o passado é resignificado, reinterpretado no presente. Na grande maioria dos casos dos monumentos que estão sendo atacados por manifestantes, já existiu um longo processo de debate sobre o que fazer com os monumentos. Cabe lembrar em primeiro lugar que a maioria deles foi construída sem nenhum tipo de consulta popular. Eram construídos por grupos com projetos políticos bem específicos que literalmente fizeram campanhas para arrecadar fundos.

Cidades como Richmond, antiga capital da Confederação dos estados do sul nos Estados Unidos, tinha uma população de praticamente 40% de afro-americanos no início do século XX. E, portanto, é uma das cidades com o maior número de monumentos confederados nos anos que seguiram o final da Guerra Civil. Podemos adivinhar que a população afro-americana, vivendo segregada e sem direitos civis jamais teve direito de opinar sobre a construção dos vários monumentos em homenagem aos pró-escravagistas como Robert E. Lee ou Jefferson Davis. Na grande maioria dos casos, seja em Bristol, Londres ou Richmond, até 2017, as autoridades locais nunca conseguiram se comprometer a contextualizar esses monumentos, a removê-los ou criar contra-monumentos. Na situação atual, onde existe uma verdadeira insurreição da população negra, principalmente da juventude, me parece que o momento para sugerir recontextualização já foi ultrapassado. Ou seja, retirar primeiro, decide o que fazer depois, seja colocar nos museus, quando isso é possível, seja recontextulizá-los com contra-monumentos ou intervenções artísticas.

Correio do Povo: Na seara dos museus, no diz respeito à presença de objetos que foram saqueados de antigas colônias, dos povos nativos, ou até mesmo de Impérios antigos, como a arte egípcia, que leitura a senhora faz da articulação que existe no mundo inteiro pela repatriação desses objetos?
Ana Lúcia Araujo: Faz parte do mesmo contexto. A população racializada como negra nas Américas e na Europa que se identifica como descendente de escravizados ou a população que se identifica como descendente daqueles que foram colonizados pelos europeus continuam sendo discriminadas e vítimas de violência física e simbólica. E nesse processo existe uma continuidade (de fato ou construída) entre escravidão e colonização. Então desde o fim da colonização dos países africanos, os novos governos independentes de países como o República Democrática do Congo (Zaire) e outros pediram a devolução dos objetos, muitos deles objetos sagrados, que foram saqueados dos países africanos durante as campanhas militares que conquistaram o continente africano. Num período onde o abismo entre brancos ricos e negros pobres é cada vez maior nas Américas e onde o abismo entre a riqueza dos países do norte e do sul também é cada vez maior, esses pedidos de restituição e repatriação fazem parte desse acerto de contas com a era colonial.

Correio do Povo: Como as noções de memória coletiva e memória cultural nos ajudam a compreender esse momento? Podemos considerá-lo de virada para o revisionismo histórico a partir de uma abordagem anticolonialista?
Ana Lúcia Araujo: Esse momento nos mostra como a memória coletiva, seja ela da escravidão e do colonialismo, também é uma memória construída tendo como base a questão racial. Nos Estados Unidos, as famílias de descendentes de proprietários de escravos e de traficantes de escravos preservaram uma memória que vê o passado escravista como um passado de glória e de riqueza. Ao contrário dos descendentes das populações escravizadas, cuja memória coletiva foi muito afetada por descontinuidades (perda de nomes africanos, separações de família, ausência de conhecimento sobre o passado de seus ancestrais) e que concebe o período da escravidão como um período de dor e traumas extremos.

Se tomarmos a questão da memória cultural na sua relação com o patrimônio material (como no caso dos monumentos), vemos que os países e cidades envolvidos no comércio atlântico de escravos preservam a memória cultural dos homens que promoveram a escravidão de africanos e seus descendentes. Isso dito, cabe lembrar que existe um movimento importante pela criação de monumentos e preservação de sítios históricos que contam as histórias dos escravizados. A cada semana temos notícias da descoberta de um cemitério de escravizados. O caso do Valongo e do Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro é um desses exemplos onde memória cultural e memória pública convergem para valorizar o passado daqueles que foram escravizados. Em vários lugares da Europa, África e das Américas existe um grande número de projetos de construção de memoriais e monumentos para homenagear os escravizados e seus descendentes.

Correio do Povo: Citando especificamente a história do Brasil neste contexto, temos a figura do Padre António Vieira, que teve uma estátua em sua homenagem instalada em 2017 em Lisboa. Gostaria que a senhora comentasse a 'polêmica' em seu entorno e esse jesuíta no processo de formação da identidade/sociedade brasileira.
Ana Lúcia Araujo: A estátua do Padre Vieira é bom exemplo para pensar os monumentos como projeto político, colocados no espaço público em um determinado período para responder aos interesses bem específicos de determinados grupos, muitas vezes sem nenhuma consulta às comunidades que vivem no lugar. Como explicar que em 2017, Lisboa tenha inaugurado uma estátua como a do Padre Vieira, figura histórica cujos contornos controversos têm sido salientados há várias décadas? Portugal entrou muito tarde no debate sobre seu passado escravista e até hoje luta para reconhecer seu lugar de nação pioneira no comércio atlântico de escravos e bastião do colonialismo em terras africanas.

Parte desse atraso explica que se apresente um padre jesuíta cujos sermões diziam aos escravizados de se conformarem com sua situação pois iriam ao céu como sendo um herói português. Visualmente a estátua é bastante problemática, promove uma iconografia paternalista. Vieira é apresentado como o protetor dos índios. Baseada em uma pintura mostra o padre cercado por duas crianças indígenas, segurando uma cruz como se estivesse a exorcizar os passantes. Ora o padre é apresentado como protetor dos índios e várias autoridades conservadoras tomam os veículos de imprensa para bradar que Vieira nunca foi em favor da escravidão. Já há vinte anos, o livro "O Trato dos Viventes", do historiador Luiz Felipe de Alencastro, mostrou que Vieira defendeu o escravismo no Brasil e em Angola.

Além disso sabemos que os jesuítas foram grandes proprietários de plantações e de escravos no Brasil, nos países da América Latina, até aqui nos Estados Unidos. Em 2017, os jesuítas dos Estados Unidos e do Canadá pediam perdão pela escravidão, no contexto de um debate sobre a venda de 272 escravos que pertenciam à Universidade Georgetown (instituição jesuíta). O que no ano de 2017 justificaria a homenagem ao padre jesuíta sem que a população lisboeta fosse consultada? Certamente haveria tantas outras figuras esquecidas e muito mais importantes que mereceriam um monumento em Lisboa, onde não existe até hoje um monumento ou memorial em homenagem aos africanos escravizados e aos africanos vítimas da colonização. Já no dia da inauguração houve protestos da organização SOS Racismo e indivíduos de extrema-direita que se juntaram para defender o monumento. Então a intervenção com tinta vermelho no monumento é uma continuidade desse processo, agora em diálogo com o que acontece no resto do mundo.

Correio do Povo: O que a senhora entende como o maior erro do sistema de ensino atual ao explorar a dominação do branco sobre o negro, o índio, o colonizado ao longo da história?
Ana Lúcia Araujo: O maior erro foi perpetuar a ignorância sobre a história do continente africano e sobre a história da escravidão e das populações afrodescendentes. O Brasil começou a corrigir esse erro com a lei de 2003, apesar das tentativas do atual governo proto-fascista de Jair Bolsonaro e seus asseclas de bloquear esse processo.

Correio do Povo: Seu novo livro explora as maneiras pelas quais a escravidão e o comércio de escravos do Atlântico são lembrados em todo o mundo. Quais são as principais diferenças de abordagem num recorte Norte-Sul?
Ana Lúcia Araujo: O sul, no caso o Brasil, que importou o maior número de africanos escravizados nas Américas tem uma memória coletiva da escravidão que permanece viva, mas ainda existe grande dificuldade que essa memória se torne pública e também oficial. Existem coisas interessantes no Brasil, na América Latina em geral, e nos países caribenhos que é uma memória pública da resistência contra a escravidão. O número de monumentos comemorando Zumbi dos Palmares é um exemplo disso. Monumentos a escravos que se rebelaram também são comuns em Cuba, Colômbia, Venezuela e Jamaica. Mas ainda faltam instituições museais que contem a história da escravidão. O Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos no Rio de Janeiro por exemplo continua lutando para sobreviver. O Museu Júlio de Castilhos, com sua exposição (longe de ser perfeita) sobre escravidão estava até dois anos atrás em extremo estado de degradação. O país não tem um museu afro-brasileiro ou da escravidão e instituições como o Museu AfroBrasil em São Paulo ou o Museu do Negro (na Igreja do Rosário) no Rio de Janeiro lutam para sobreviver.


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