Regina Navarro Lins: “A gente está assistindo a novas formas de amar”

Regina Navarro Lins: “A gente está assistindo a novas formas de amar”

Psiquiatra e escritora preparou um curso inédito para refletir sobre o amor em tempos de isolamento social

Gabriel Guedes

Autora ministrará um workshop online no Instituto Ling

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A psiquiatra e escritora Regina Navarro Lins trabalha há 46 anos em seu consultório particular, no Rio de Janeiro. Ex-professora de Psicologia do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, foi colunista de diversos jornais e apresentou programas de rádio. É autora de 13 livros sobre relacionamento amoroso, entre eles “O Livro do Amor” e “Novas Formas de Amar”, preparou um curso inédito para refletir sobre o amor em tempos de isolamento. 

Correio do Povo - Como a senhora começou a se interessar pelo amor entre as pessoas?
Regina - Eu sou psicanalista, tenho consultório há 46 anos, mas de 26 anos pra cá, eu mergulhei em uma outra área dentro dos atendimentos. Eu comecei a perceber que meus pacientes sofriam muito com questões ligadas a relacionamento amoroso e sexual. Eu vendo aqueles sofrimentos desnecessários, resolvi mergulhar na história das mentalidades para entender. Eu fiz muitos livros.

Eu tenho 13 livros, tudo sobre relacionamento amoroso. Um dos livros eu fiquei 5 anos pesquisando, são dois volumes, que se chama "Livro do Amor", que eu queria entender como é o amor desde a pré-história, da Grécia antiga. Então comecei a trabalhar com as questões de relacionamento amoroso. Dou palestras pelo Brasil todo. Já dei várias em Porto Alegre. O último livro eu lancei aí. Então eu trabalho assim: a gente está tendo uma grande mudança nas relações amorosas e que é necessário se trabalhar com estas questões das mudanças, para as pessoas poderem entender, se sintonizarem com o que está acontecendo.

CP- A que sofrimento você se refere?
Regina - No meu último livro, Uma Nova Forma de Amar, escrevi porque comecei a receber casais para terapia de casal no consultório, com uma questão que eu nunca tinha visto, modéstia parte, um conflito novo: uma das partes propõe a abertura da relação e a outra parte se desespera, vem parar no consultório. E isso começou a acontecer com tanta frequência e eu comecei a receber mensagens também, que eu escrevi o livro Novas Formas de Amar, sobre o que está acontecendo. Agora em outubro vou lançar um novo livro, que se chama Amor na Vitrine, um olhar sobre as relações amorosas contemporâneas.

CP- Uma das perguntas que mais tenho feito ultimamente é como eram as coisas e como estão agora. Com base em suas percepções, como a senhora enxergava o mundo emocional das pessoas antes do novo coronavírus?
Regina - Nós estamos no meio de um processo, de uma profunda mudança nas mentalidades. Isso antes da pandemia. Este processo começou nos anos 60, com a pílula anticoncepcional, que provocou todos os movimento contracultura, o movimento hippie, o movimento feminista, o movimento gay e toda revolução sexual. Nós começamos esta mudança e estamos no meio de um processo. Mas cada vez mais a gente nota que novas formas de se relacionar estão surgindo. Porquê? O amor romântico - o amor é uma construção social e em cada período da história ele se apresenta de uma forma - começou no século 12, mas nunca pôde entrar no casamento.

O casamento era sempre pela família escolhendo, por interesses econômicos e tal. O amor romântico passou a ser uma possibilidade no século 19, mas entrou pra valer em 1940 e muito incentivado pelos filmes de Hollywood. Eu sou muito crítica ao amor romântico e trabalho muito para mostrar para as pessoas o prejuízo deste tipo de amor. Então o amor romântico é a personalização da idealização. Você conhece uma pessoa e você atribui uma característica de personalidade que ela não possui. Na convivência você não consegue manter a idealização e aí se desencanta, acha que foi enganado. E não se consegue manter porque você é obrigado a ver aspectos no outro que você não gosta. Antes você só idealizava.

CP - A causa desta transformação toda é o amor romântico, então?
Regina - O amor romântico traz outras características, outros ideais que são bem prejudiciais. Por exemplo, ele prega que os dois tem que se transformar em um só. Ser a metade da laranja, um vai ter todas as necessidades atendidas pelo outro. Que as coisas só têm graça com o amado junto. E prega uma mentira absurda que diz que quem ama de verdade não tem desejo por mais ninguém. Este gera muito sofrimento por que se você descobre que seu amado ou sua amada transou com alguém, você tem certeza que não é amado. Então é terrível. O que acontece hoje, e antes da pandemia já estava acontecendo, é claro, a busca da individualidade caracteriza nossa época contemporânea. As pessoas estão querendo descobrir mesmo seu potencial para se desenvolver, as possibilidades da vida.

A grande viagem do ser humano é para dentro de si mesmo. E o amor romântico propõe o oposto da individualidade. Você repara que alguém quando casa, no casal, é muito comum se meter na vida do outro, dizer o que tu deve responder para chefe e tal, que roupa vestir. As pessoas casam na nossa cultura sem ideia da importância da individualidade. O amor romântico está dando sinais de sair de cena por causa do disso. Ao sair de cena, está levando com ele a características básicas, da exigência de exclusividade. Por isso que a gente está assistindo a novas formas de amar, amor a três, relações livres, poliamor. Estas formas estão surgindo porque cada vez mais gente começa a questionar se a monogamia é uma coisa que tem que ser mantida. É um processo. Eu faço “lives” toda semana, recebo perguntas, e é impressionante como a questão de abrir a relação é a pergunta campeã: o que eu digo para o meu marido, para minha namorada, que eu eu quero abrir a relação?

CP - Isso é um aspecto evolutivo?
Regina - Eu acho profundamente evolutivo. Não há problema algum de alguém em ser monogâmico. O problema é que esta monogamia é forçada, é obrigatória, é cobrada. Isso é muito ruim. Nós estamos vivendo um momento muito interessante, por que os modelos tradicionais não dão resposta para que cada um escolha como quer se viver. Não se trata de substituir um modelo pelo outro: “ah, agora tem que ser monogâmico, agora é proibido não sei o quê”. Se alguém quiser fazer bodas de ouro, 50 anos casado com esta pessoa e só fazer sexo com ela, está tudo certo. Tem que ser aceito naturalmente. Mas se alguém quiser ter três maridos, também está tudo certo. O importante é que você respeite a escolha dos outros e respeite sua própria escolha, como tu quer viver. Porque isso nunca aconteceu. As pessoas sempre precisaram se enquadrar em modelos. Quem não se enquadrasse em modelos, era discriminado, era rejeitado. É uma grande evolução as pessoas poderem escolher sua forma de viver.

CP - A monogamia está em queda?
Regina - Quando você pergunta se é evolução ou involução, a gente pensa o seguinte: a monogamia nunca existiu para o homem. Sempre o homem teve várias mulheres, porque não tinha o perigo da gravidez. A monogamia para a mulher surgiu há 5 mil anos, quando a propriedade privada apareceu: meu rebanho, minha terra. Antes, era todo mundo junto, tudo era comunidade. Os filhos eram filhos de todos. Quando surgiu a propriedade privada, começou a surgir a mulher aprisionada porque o homem queria ter certeza da paternidade, para não deixar herança para filhos de outro. Foi uma coisa sempre calcada na gravidez. Foi a partir da pílula que isso começou a mudar. Porque os homens tinham as relações extraconjugais no século 19, iam nos bordéis. As mulheres tinham que ser esposas respeitadas. Eu tive uma paciente, a muitos anos atrás, que batia no peito, “eu sou esposa respeitada, as porcarias ele pegava fora de casa”. 

Então as mulheres aceitavam que os homens tivessem amantes, que fossem em bordel, porque era coisa de homem. Com a pílula, com a revolução sexual, invés das mulheres aderirem a isso, as mulheres passaram a cobrar exclusividade do homem. Mas hoje o número de mulheres que têm casos fora do casamento, é o mesmo número de homens. Desde a pílula. O que acontece é que é escondido. Alguns estão propondo a abertura da relação, inclusive quando um homem propõe a abertura da relação, que é uma coisa que antes demoraria, neste momento ele está admitindo que sua mulher tem outras relações, senão, ele continuaria escondido.

Na hora em que ele chega para a mulher, um paciente de 40 e poucos anos - ele marcou hora -, disse: “eu vim aqui para você me ajudar: somos casados há 15 anos, adoro minha mulher, temos três filhos, a gente faz sexo todo dia, nos amamos muito, mas conversando com ela, propus abrirmos a relação. Acho que ela tem poucas experiências e estaria livre para que ela transasse com quem quisesse”. Dois meses depois ele descobriu que ela estava tendo um caso. E enlouqueceu de ciúmes. Então ele veio para o consultório, para que eu pudesse ajudar a não sentir este ciúmes. “Por que acredito que a melhor forma é cada um poder se relacionar com quem quiser e eu não quero sofrer”, contou. Isso é uma evolução. Ele poderia simplesmente ter relações extraconjugais escondidas e ela nunca cederia. Então é uma mudança.

CP - E como estão as relações amorosas na pandemia?
Regina - Antes da pandemia a gente estava tendo este processo. Mas o que está acontecendo durante a pandemia é uma situação muito complicada. Tem um casal em que os dois trabalhavam fora, se encontravam só de noite, e agora estão 24 horas por dia, 7 dias por semana. Recebo mensagens, agora, de mulheres dizendo que não aguentam mais, “tô sufocada, eu nunca fiquei tanto tempo assim com meu marido. Agora fica grudado, quer saber com quem estou falando no celular”.

Aí cai num problema: mesmo antes da pandemia, o amor romântico, que prega a fusão, as pessoas nunca deram atenção à importância da individualidade. Esta ausência de respeito de individualidade do outro está sendo um problema muito mais acentuado na pandemia. Eu acredito, eu tenho esperança, passando a pandemia, espero que as pessoas se deem conta da importância de se reformular os códigos que estabeleceram a relação, porque os códigos são estabelecidos mesmo sem você verbalizar. Então se as pessoas entenderem que uma relação não pode ser satisfatória sem um respeito à individualidade, já é uma grande coisa.

CP - Mas há mais problemas ainda...
Regina - Por exemplo, recebo mensagens de pessoas que me dizem o seguinte: “Meu casamento de 18 anos, 12 anos, eu ia levando, sinto afeto pelo meu marido. Mas eu tenho um amante, que eu encontro no meu trabalho e a gente vai para o motel. E estou há mais de 4 meses sem poder encontrá-lo. E ele também é casado, também não tem liberdade de falar e eu também não, então, a gente está tendo que se afastar sem que isso comprometa meu casamento. Por que era muito mais fácil levar quando a gente se encontrava”. Então, este é um problema sério. O outro problema, o rapaz que eu eu atendo e ele namorava uma moça, cada um morava no seu apartamento e às vezes dormiam um na casa do outro.

E antes da pandemia, ela foi visitar os pais, deu a pandemia e ficou por lá. Ele não está conseguindo mais encontrar a namorada, só pela internet, fazem sexo pela internet. As pessoas que estão sozinhas também têm um desafio. Não sei se tu viu, no início da pandemia, o prefeito de Nova York pediu para que as pessoas se masturbassem por que era melhor do que você fazer sexo com alguém, por causa do risco de contaminação. E a gente sabe que as vendas de objetos de sex shop cresceram muito.

Então espero que as pessoas percam o preconceito com a masturbação, porque a masturbação é ainda um tabu. No séculos 18 e 19, a medicina, que substitui a Igreja na repressão ao sexo, escolheu a mastubarção e a homosexualidade para atacar, porque não levava à procriação. Então, se você visse o que eles, os médicos escreviam sobre a masturbação, parecia filme de terror. Eles inventaram um fio, que era amarrado no pênis do rapaz, que se tivesse ereção, tocava um sino no quarto dos pais. Ainda é um tabu, embora todo mundo faça.

CP - Os solteiros devem estar enfrentando muitos problemas também?
Regina - Está muito difícil. Um rapaz escreveu para mim que está desesperado, que não aguenta mais. Uma outra moça me disse assim: “antes eu saía, não tenho namorado, saía em grupo, ia para a balada, viajava no final de semana. Minha vida era muito agitada. Agora não encontro mais ninguém, está muito difícil”. Agora é importante as pessoas entenderem que é fundamental a capacidade de ficar bem sozinho, sem um par amoroso fixo. Então, as pessoas que desenvolvem esta capacidade, devem estar melhores nesta pandemia. Vão ler um livro, ver uma série, sentam e conversam com os amigos. Mas mesmo assim já está demorando muito esta pandemia. O arriscado é isso e vejo fotos aqui no Rio, na praia, no calçadão do Leblon, entupidos de gente, porque o pessoal já não está mais aguentando ficar trancado. É perigoso. Muita coisa vai mudar, mas ainda vamos precisar de um tempinho para avaliar as mudanças que aconteceram realmente.

CP - É possível ter espaços distintos sob o mesmo teto?
Regina - Eu acho que é fundamental as pessoas perceberem que eu sou eu e ele é o outro. Não é uma continuação minha e nem eu continuação dele. Nós somos três: eu, ele e a nossa relação, que é o espaço de nós dois. Ele tem o espaço dele e eu o meu. Só acredito que uma relação só pode funcionar bem se houver total respeito ao jeito do outro ser, a sua forma de pensar, de se comportar, se não houver controle algum e inclusive ter amigos em separados. Ninguém é obrigado a estar junto o tempo todo. Então, as pessoas estão precisando refletir sobre este modelo de casamento, este modelo de relacionamento. Este modelo de relacionamento na nossa cultura é muito ruim. A maioria das pessoas vivem mal. Porque todo mundo recebe tudo pronto e acha que é assim mesmo.

Todo mundo pensa que o amor é o amor romântico. As pessoas têm que refletir se vale a pena continuar com este modelo de casamento, de relação, cheio de controle, feito como se fosse tudo normal. Tá na hora de parar e começar a perceber as individualidades do outro e respeitar e exigir respeito à própria individualidade. Porque tem muita gente que aceita ser controlado, desde que seja um bom pretexto para controlar o outro. Uma relação só tem sentido em existir se as duas pessoas estão bem, satisfeitas na companhia um do outro, gostam de fazer sexo um com o outro. Uma relação não pode existir por necessidade de ter alguém. Também não pode ser alguém que você controlou. Não existe. Quem acredita que precisa controlar alguém está se iludindo com uma ingenuidade.,

CP - Como manter o encantamento durante a pandemia?
Regina - Existe uma coisa que é a paixão-romance. A paixão é aquela coisa, em que você suspira, teu coração dispara, vem um frio na barriga. Tudo isso num tempo. Porque a paixão existe enquanto você não conhece muito bem o outro. Inclusive têm estudos que mostram que ninguém se apaixona por alguém que você conhece bem. Aquela paixão de coração
disparar é no início. Você pode ter uma relação com uma pessoa e você continuar admirando vários aspectos da pessoa. Importante que você não idealize. Você tem que considerar os aspectos que gosta e os que não gosta. Então acho que você pode, sim, ter uma encantamento neste sentido, mas por um lado real, pela companhia, por rir junto, se divertir, mas sem aquela coisa de achar que o outro é todo perfeito.

CP- Com a Covid-19, também tem a perda súbita do parceiro. Como lidar com o luto?
Regina - O luto é muito ruim, é uma coisa muito dolorosa. Você precisa de um tempo para lidar com o luto. Todo mundo precisa de um tempo. Quando você perde uma pessoa, você fica com suas energias toda colocada naquela pessoa. Então é importante que esta energia volte para você. E não é muito simples não, principalmente se a relação era boa, se aquela pessoa era alguém que acrescentava alguma coisa à sua vida. Mas todo luto é muito difícil.

CP - Há pessoas que estão desenvolvendo quadros psiquiátricos durante a pandemia. Como fica a relação amorosa?
Regina - Isso é difícil, é uma situação de muito estresse, você preocupado com a outra pessoa. Também tem o medo de se pegar a doença. Eu acabei de perder meu primo, de 70 e poucos anos, um pouco mais velho que eu. De Brasília, um grande advogado e conforme ele falava, que só estavam trancados em casa, aí 15 dias depois, quando eu liguei, ele estava internado, intubado. E eu perguntei: “eles estão saindo?”. Aí disseram que estavam saindo um pouquinho, que ele tinha ido no escritório. 

Então, dá medo, dá medo! A gente não sabe até que ponto é bom não sair. Às vezes vamos na farmácia. Mas eu mal coloco o pé na portaria do prédio há quase cinco meses. E nem pretendo pegar tão cedo o elevador. Vai que eu pego o elevador e pego o vírus de alguém que esteve por lá. É muito estresse e a gente vai ter que reavaliar. Muito estresse em você se afastar das pessoas e quantas pessoas que não vão ver os filhos, os netos. Esta coisa do inesperado assusta. E essa pandemia deu uma ideia muito clara da fragilidade humana. O Freud, ele tem uma coisa que eu gosto muito, em que ele fala em um dos textos dele. Existem três causas para o sofrimento humano: a força da natureza - como uma tempestade que destrói uma cidade, por mais tecnologia que se tenha hoje.

Em segundo lugar, a fragilidade dos humanos. Isso eu acho que é uma das causa do sofrimento. E a terceira se impõe como uma inadequação das normas sociais, que regem as relações entre as pessoas, família e estado. E é isso que eu tenho que fazer para facilitar a visão. A fragilidade se deve à força da natureza, como o próprio vírus. Mas a fragilidade dos nossos corpos assusta. Esta pandemia deixou um inimigo invisível, que está pegando todo mundo, que não sabe quem vai matar ou não. Nunca se sabe se a pessoa que pegou vai complicar ou não complicar. Então, acho que são muitos estresses que as pessoas estão vivendo.

CP - Diante de tudo que está acontecendo, ainda é possível ser feliz?
Regina - Acho que tem pessoas que conseguem viver de uma forma razoavelmente satisfatória, como alguém que já tinha trabalho em casa, que continua produzindo, fazendo coisas, porque tem pessoas que perderam trabalho. Pensa no nível do desemprego, de tudo que está parado e não sabe se vai voltar. Agora acho que quando você tem um trabalho, é um intelectual, um trabalho criativo, então pode ser porque você sofra porque não está podendo encontrar uns amigos, ir na praia, mas dá pra você ir levando. Feliz, feliz, acredito que ninguém esteja com tanta gente morrendo e com tanto medo. Mas eu acho que algumas pessoas que podem continuar fazendo o que gostam, podem estar levando relativamente bem.


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