Retrospectiva 2020: A antecipação do ensino remoto

Retrospectiva 2020: A antecipação do ensino remoto

Especialistas analisam os temas que mais marcaram 2020

Tais Teixeira

Gregório Durlo Grisa, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS)

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A pandemia mundial de Covid-19 gerou demandas inéditas para as redes de ensino, o que inclui professores e alunos. Em torno de 80% das escolas municipais e quase todas as estaduais  ofertaram alguma atividade remota. O doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Gregório Durlo Grisa, afirma que não há uma cultura digital disseminada entre os docentes brasileiros, situação que fez  a maioria se reinventar e aprender a lidar com plataformas, programas, redes sociais. O doutor também destaca que o modelo digital intensificou as  desigualdades sociais, que já eram significativas.

Com a pandemia, o ensino remoto foi adotado. Funcionou mesmo? Como o senhor avalia que foi no ensino público, no ensino fundamental, médio e graduação? E no ensino privado? 

A variedade e a qualidade de oferta do ensino remoto foi muito grande no Brasil. Cerca de 80% das redes municipais, e praticamente todas as redes estaduais, ofertaram alguma atividade remota. As pesquisas que temos, até agora, indicam que o ensino remoto é mais bem aproveitado por estudantes que já tinham um desempenho satisfatório. Na rede privada, em que o perfil dos estudantes é mais privilegiado, o prejuízo que envolve o ensino remoto é mais bem contornado. Só pesquisas e avaliações a partir de agora poderão nos dar insumos para responder de forma mais precisa essas questões.  

Quais aspectos positivos foram gerados e em quais categorias? E os aspectos negativos, foram mais sentidos em quais níveis? 

A pandemia trouxe demandas inéditas para redes de ensino, professores e estudantes. Não há uma cultura digital disseminada entre os docentes brasileiros, a maioria teve de se reinventar e aprender a lidar com plataformas, programas, redes sociais. Utilizar mais as ferramentas digitais pode ser considerado um ponto positivo, contudo, muitas vezes, isso significou muito mais tempo dedicado ao trabalho e mais exposição dos docentes diante dos colegas e estudantes. Isso fez com que se perdesse um tanto a noção do tempo doméstico e do tempo de trabalho. Professor utilizando redes e plataformas e gravando vídeo aulas não pode significar um professor “on-demand”, ou seja, disponível muito além do seu contrato de trabalho,10, 12 horas por dia (fora planejamento, atendimento e avaliações). 

Como o ensino se organizou para isso?  

A demanda por tecnologias na educação, que já existia para formação docente, apenas se intensificou. Os cursos de formação inicial e a formação continuada devem priorizar esses aspectos. 

O rendimento foi comprometido? Se sim, de que forma? Em quais níveis e idades? 

A dimensão da inclusão digital é um desafio no Brasil, em especial para os mais pobres. Claro que o ensino remoto impõe limites para os estudantes mais vulneráveis. Além da questão digital, é preciso pensar nas condições domiciliares dos estudantes. Os que têm apenas um celular em casa, sem banda larga, são os que mais têm problemas de infraestrutura em seus lares e também vivem em famílias que, por inúmeros motivos, têm dificuldade de acompanhar a vida escolar das crianças. Todos são prejudicados de alguma forma. O ensino remoto não pode ser comparado ao presencial, mas penso que crianças da pré-escola e dos anos iniciais (alfabetização) podem ter sido as mais prejudicadas. Hoje é difícil mensurar o quão a aprendizagem está comprometida, isso dependerá das avaliações e diagnósticos que devem ser feitos com o gradual retorno das escolas. 

O aprendizado de crianças das séries iniciais que estão em aula remota neste momento, terão que tipo de aproveitamento, já que os pais tiveram que atuar muito? Essa ajuda dos pais é saudável? 

O problema desse contexto é a dependência da ajuda e do tempo dos pais. Imaginem a pluralidade de cenários. Pais alfabetizando não é o melhor cenário, os relatos de impaciência e de frustração são numerosos, mas a ajuda dos pais não é uma escolha, mas uma necessidade. No período da alfabetização o papel do professor é fundamental. Ele tem formação, experiência e planejamento. Muitos pais não têm condições de dedicar o tempo necessário para as atividades e não têm conhecimento de como conduzi-las, mas qualquer tipo de suporte é melhor do que nenhum. 

Com essa experiência antecipada pela pandemia, deve ocorrer mudança no ensino presencial, padrão vigente  no Brasil? 

Penso que o ensino presencial sairá muito fortalecido da pandemia. Muitas pesquisas mostram que a adoção de “tecnologias” no ensino não é panaceia, pelo contrário, tem de ser muito bem planejada e contar com variáveis de contexto para alcançar bons resultados. O Datashow ainda é a ferramenta mais eficiente que computadores e tablets para o ensino propedêutico tradicional. Mas penso que o uso de softwares e de programas contextualizados pode ser um legado importante. 

O modelo de ensino pode migrar para a modalidade híbrida? Em quais modalidades teria mais aspectos positivos e quais teriam mais aspectos negativos? 

Penso que para o trabalho administrativo das escolas isso faz mais sentido. A modalidade híbrida já existia em alguma demanda, o que pode ocorrer agora é que as plataformas podem ser mais usadas para fins de registro, avaliação, mas nada que possa concorrer com o ensino presencial. 

Qual é a diferença entre ensino remoto e ensino a distância (EAD)? 

O remoto pode ser a entrega de materiais físicos, pode ser pela TV ou rádio, ele replica práticas e atividade da experiência remota. Já o EAD é uma modalidade específica, regulamentada no Brasil e que tem metodologias e práticas próprias, calcadas nas tecnologias da informação. 

Sociologicamente, o que significa essa inserção digital no ensino num momento em que não estava previsto? 

Primeiramente, significa uma intensificação da desigualdade que já era significativa. A inclusão digital deve se tornar pauta nacional, temos de conceber a boa conectividade e bons aparelhos como direito dos estudantes e não mais como serviço que só acessa os que podem pagar. Pode representar também certa precarização do trabalho docente, na medida em que muitos professores tiveram de mergulhar em uma realidade que não dominavam, tendo inclusive que investir em aparelhos, uma internet melhor, em reorganizar espaços em casa para trabalhar, afora o aumento do tempo necessário para realizar o mesmo trabalho que fazia antes presencialmente. 

Como podemos considerar a formação desses estudantes que, no contexto de pandemia, tiveram que ter aulas sem a presença de colegas, isso desenvolveu uma certa autonomia?   

Há de ter pesquisa para aferir isso. Em alguns casos, a experiência pode representar algum avanço da proatividade. Mas a tendência é que os efeitos socioemocionais negativos do isolamento social sejam mais percebidos, pelo menos em um primeiro momento. Daí a demanda para que a escola também olhe para a saúde mental dos estudantes e dos professores na retomada.


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