Stalking agora é crime

Stalking agora é crime

Mauren Xavier

Gabriela Souza, advogada feminista, fundadora do primeiro escritório de advocacia para mulheres no sul do país, coordenadora jurídica do #metoobrasil e sócia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres.

publicidade

A entrada em vigor da lei que tipifica como crime o ‘stalker’ dá visibilidade a uma prática que pune duplamente as vítimas. Praticado principalmente contra mulheres, a perseguição contínua afeta a liberdade e traz prejuízos físicos, por representar um risco à vida, e psicológicos. Com a tipificação de crime, a prática passa a constar no Código Penal e pode resultar em reclusão e representa uma vitória no combate aos crimes de gênero, avalia a advogada feminista Gabriela Souza. Ela é fundadora do primeiro escritório de advocacia para mulheres no sul do país, coordenadora jurídica do #metoobrasil e sócia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres. A seguir, trechos da entrevista ao Correio do Povo.

O que é o stalking e quais são as suas características como crime?

Na verdade, por ser uma palavra em inglês a gente fica um pouco com dúvida sobre o que é stalking. Mas o stalking nada mais é do que uma pessoa que segue alguém de forma reiterada, por qualquer meio físico ou eletrônico, ameaçando a integridade da pessoa física ou psicologicamente. Muito mais psicologicamente, diria. E isso tira dessa pessoa, que é vítima, uma capacidade de locomoção ou, perturbando de forma reiterada, a liberdade ou a privacidade. Ou seja, é uma perseguição. Não é apenas ir um dia no mesmo lugar ou curtir as fotos nas redes sociais. Muitos jovens dizem “estou ‘stalkeando’ porque achei ele bonito”. Não é isso. “Stalkear” é ir contra a vontade daquela pessoa. É aparecer no lugar que aquela pessoa postou em uma rede social que estava. É ser bloqueado em todos os aparelhos eletrônicos e, de repente, fazer Pix (transações financeiras eletrônicas) de forma reiterada. Fiquei muito espantada com a rapidez que isso aconteceu. Porque a pessoa está bloqueada de todas as redes sociais, mas o Pix não pode bloquear. Então, a pessoa decidiu fazer depósitos reiterados de R$ 0,01 e, em cada depósito, mandava uma mensagem. Isso é uma forma de perseguição.

Qual a importância da sanção dessa lei que tornou essa perseguição um crime e como que ela altera a percepção diante à Justiça?

É muito importante que essa lei venha porque representa um avanço imenso na defesa do direito das mulheres, porque, embora homens possam ser vítimas de stalkers, é um crime cometido majoritariamente contra o gênero feminino. É também importante porque antes dessa lei a gente conseguia enquadrar como crime de perturbação à tranquilidade, uma contravenção penal, com uma pena muito menor. Agora a gente coloca isso dentro do Direito. Passa a existir o tipo penal perseguição/stalker justamente para evitar e para combater. O legislador brasileiro enfim entendeu que isso é uma prática que tira a autodeterminação da vítima.

O que exatamente isso significa?

A vítima fica imobilizada. Muitas vezes ela não pode ficar em casa porque, além de toda a perseguição que existe, receber ligações, chamadas, e-mails, ainda há todo o medo de “será que se eu for (para casa), aquela pessoa estará lá?”. Então, mexe muito, principalmente com a parte psicológica. Fiquei muito feliz de a lei falar da ameaça à integridade física e psicológica. Porque não precisa haver dano concreto à saúde física e psicológica, mas só de existir a ameaça já está contemplada (na lei). Assim, é muito importante e é uma conquista extremamente relevante para as mulheres e para toda a sociedade.

Pelo seu relato, a vítima acaba sendo duplamente penalizada com este tipo de crime. Sofre a perseguição, e, além disso, precisa mudar sua rotina. Inclusive, parece ser difícil de dimensionar o desfecho de um caso de stalker. É correto esse pensamento?

E muitas vezes a vítima tende a diminuir o comportamento de um stalker. Principalmente porque não era crime. Daí vem aquele pensamento, “mas é um amor platônico”, “é um amor não correspondido”, “ele só está me mandando e-mail e não vai me fazer nada”. Mas, principalmente, se a gente colocar a prática de stalker na perspectiva de gênero, observamos que um stalker é uma pessoa que age sem limites. Então, é muito difícil que ele cumpra uma medida protetiva. Muitas vezes, eles (stalkers) se mudam para perto da vítima, aparecem, simulam que trabalham em aplicativos de transporte para poder chegar e buscar a vítima. Fazem terror psicológico. Mandam cartões, mandam flores, mas não é só isso, não é só essa coisa que a gente aprendeu a romantizar. A lei trouxe algo que é muito necessário, que é o “não é não”. Se uma pessoa, por mais que seja objeto de afeto, não quer esse afeto e não quer essa proximidade, então, isso não pode acontecer porque é crime. Esse afeto deve ser dado para quem o quer. Além disso, o stalker tem muito mais que do que afeto. Ele tem uma obsessão. Essa lei é importante para as mulheres, mas também é relevante para que as mulheres entendam a gravidade que é um stalker. Porque nesse ponto já não é a primeira violência. Normalmente, a mulher já pediu para parar e não houve esse respeito. Mas pode ser que não seja a última. Podem ocorrer ações mais graves e é um indicador de risco.

Pela atuação do escritório, vocês registram aumento de casos? Já que muitas mulheres não percebem a gravidade real desses crimes.

É muito importante essa reflexão porque nós (mulheres) aprendemos uma ideia deturpada de um amor romântico, no qual o homem vai em busca da amada, não importando os limites e fazendo de tudo para conquistá-la. Isso nos ensinou que o “não” pode ser relativizado. Mas “não é não”, independente da situação. A lei veio para que as mulheres entendam que não é só uma perturbação. Muitas vezes há dificuldade de se perceber como vítima. Até porque a ideia de vítima é de uma mulher fragilizada. E não é assim. Somos fortes e estamos sendo mais fortes ainda para termos uma vida saudável, mesmo sendo perseguidas, mesmo tendo um stalker na nossa vida. É importante que a gente amplifique esse conhecimento, fale muito da lei para que mais mulheres saibam. E também para que as meninas que entram na vida adulta agora, iniciando suas relações, já saibam que “stalkear” é crime. O Direito avança aos poucos. Então, obviamente, a lei é muito importante para as mulheres adultas e que precisam disso imediatamente, mas também tem uma proposta de educação e de disseminação de conhecimento. É muito maravilhoso termos uma geração que já vai começar agora a ter relacionamentos sendo protegida e a não ter essa romantização que faz com que mulheres mais velhas achem que faz parte do romance e se sintam, muitas vezes, culpadas.

Levando em consideração que o stalking tornou-se crime, qual seria a orientação para uma mulher que está em dúvida se é vítima desse crime e como deve proceder?

A gente sempre relativiza quanto é conosco, principalmente pela dificuldade de se perceber como vítima. Mas é muito importante saber qual é a nossa medida. Se estamos em um relacionamento e é consensual o envio reiterado de mensagens, faz parte e tu aceita e também troca, ok. Agora, temos que confiar na nossa percepção. Se a gente começa a achar que “não está certo isso”, “tem alguma coisa errada”, “não é legal ficar recebendo isso”, “não é legal eu sair e ele estar em todos os lugares”. Então, temos que ouvir a nossa intuição, porque ela é, muitas vezes, responsável pela manutenção da nossa vida. E, agora, sabendo que é crime, precisamos comunicar isso (às autoridades), principalmente quando ocorre após um término de relacionamento. Porque 40% dos feminicídios consumados acontecem nessa hora, quando o homem tem dificuldade de aceitar o término do relacionamento. E muitos desses 40% não tinham episódios de violência antes.

Isso reforça o risco de um stalker...

Não podemos dizer que, se os números de homens que matam mulheres porque elas tentam terminar relacionamentos são altos, sendo essa a primeira violência desse homem, um stalker é uma pessoa indefesa ou não é perigosa. A gente deve registrar boletim de ocorrência. Temos aqui no Rio Grande do Sul a delegacia on-line, onde é possível registrar essa ocorrência. É importante mencionar que o crime necessita de representação judicial. Então, preciso levar ao conhecimento (das autoridades policiais), preciso manifestar minha vontade de que essa pessoa seja representada criminalmente. Se sou vítima de um stalker e tive uma relação íntima, doméstica ou familiar posso e devo pedir medida protetiva e se, por acaso, ele não parar, além de rescindir no crime, vai estar cometendo outro, que é o descumprimento da medida protetiva.

E como se prova?

Pode juntar prints dos telefones para ver quantas chamadas recebeu, porque normalmente são dezenas, print de mensagens de Whatsapp. Se ele está bloqueado pode juntar mensagens que ele tenha mandado para outras pessoas, fotografias e filmagens do stalker nos lugares que ele não deveria saber. Pode buscar imagens nas câmeras de segurança dos seus prédios, cópias de e-mail, se houver depósito de Pix, cópias desses extratos. E juntando tudo isso, deve levar ao conhecimento da polícia, em uma delegacia especializada. A lei vai ajudar na elaboração de políticas públicas contra o stalker, porque, infelizmente, os tipos de violência vão se modificando. Se hoje estamos trabalhando em casa e usando as redes sociais em função da pandemia, a violência também ocorre de modo virtual.

Uma vez que parte dessa violência ocorre nas redes sociais, como uma pessoa que é ou está sendo vítima, pode se cuidar nesses espaços?

É muito importante a gente lembrar do autocuidado. A vítima nunca vai ter culpa, mas ela pode se proteger, principalmente se está sendo vítima de um stalker. Isso porque o stalker vai procurar informações, vai buscar e-mails, localização. Muitas vezes eles cometem outros crimes para “stalkear”, invadem telefones, divulgam fotos íntimas e os crimes vão se somando. É muito importante a gente criar hábitos, como não compartilhar imediatamente a nossa localização. Por exemplo, não fazer stories e marcar onde estamos, não mostrar o endereço de casa ou lugar de trabalho. Se tiver medida protetiva, deixa na portaria do teu prédio, fica com uma cópia sempre contigo. Fazendo uma crítica de gênero, é absurdo a mulher ter que ter cuidados, cuidados e cuidados. Porém, isso pode garantir a manutenção da nossa vida. Principalmente porque ser vítima de um stalker é extenuante. É muito cansativo. Eles têm a capacidade de descobrir onde a vítima está. De ficar a noite inteira acordado em frente à casa, de se fingir de motorista de aplicativo para querer buscar aquela mulher. É muito cansativo. Então, é preciso se preservar, se cuidar e, eventualmente, mudar o caminho, andar acompanhada, avisar um grupo de amigos onde tu estás. Esses cuidados são muito importantes. Já acompanhei casos em que a vítima se sentia presa e o stalker estava livre, andando, circulando e, exatamente, pela dificuldade de tipificar a conduta dele não havia o que fazer. Mas agora é reclusão.

A lei abre espaço para o desenvolvimento de ações de prevenção, como o que aconteceu com a Lei Maria da Penha, por exemplo?

A Lei Maria da Penha e dos crimes de gênero preveem punição, mas também a prevenção. A gente precisa sempre pensar em uma estratégia de prevenção para que as futuras gerações não sofram com isso. Enquanto a gente não conseguir educar a população, a gente não vai ganhar essa luta. A violência doméstica mata 12 mulheres por dia no Brasil, é o quinto país mais violento do mundo para se existir como mulher.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895