Alberto Vanucci: "A Lava Jato não é suficiente"

Alberto Vanucci: "A Lava Jato não é suficiente"

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Alberto Vanucci / Arquivo Pessoal / CP Alberto Vanucci / Arquivo Pessoal / CP


 

O cientista político Alberto Vannucci, professor da Universidade de Pisa, na Itália, é um dos maiores pesquisadores da operação Mãos Limpas (em italiano Mani Pulite), que, nos anos 90, revelou uma série de esquemas de corrupção envolvendo políticos e empresários italianos. A Mani Pulite causou grandes mudanças no sistema político e teve como consequência o fim da chamada Primeira República Italiana, provocando o desaparecimento de diferentes partidos. Em seu lado mais trágico, resultou até no suicídio de envolvidos. No Brasil, a Mãos Limpas é apontada como inspiração para a operação Lava Jato e, por isso, as comparações são inevitáveis. Vannucci, que dedicou décadas de estudo ao tema da corrupção, não é um entusiasta da Mãos Limpas. Para embasar seus argumentos cita, entre outros pontos, a história da Itália após a operação. Na entrevista que concedeu ao Correio do Povo, por e-mail, o professor aponta para a  necessidade de mudanças estruturais e profundas caso o Brasil deseje de fato combater a corrupção sistêmica

CP: O senhor demonstrou que, na Itália, a operação Mãos Limpas deixou a corrupção exposta, mas não acabou com ela. Mais do que isso, deu origem a mecanismos mais sofisticados de corrupção. Isso pode acontecer no Brasil com a Lava Jato?
Alberto Vanucci: Na Itália, a Mãos Limpas teve como efeito inesperado e indesejado uma espécie de seleção darwiniana, uma nova espécie de corruptos e corruptores, que aprenderam com os erros dos seus antecessores envolvidos nas investigações, produzindo assim um padrão de corrupção ainda endêmica, mas mais bem organizada. E, portanto, mais difícil de ser identificada e de ser perseguida pelo poder judicial. Ela pode ser definida como uma corrupção sistêmica 2.0. Um processo semelhante pode acontecer no Brasil. Na verdade, pode ocorrer em qualquer situação onde exista corrupção sistêmica, que é quando a prática tem raízes profundas na vida política e administrativa e se torna a bússola de decisões empresariais, que buscam políticas de proteção e anuência. Enquanto as raízes da corrupção permanecem vivas, há risco de que seus fenômenos evoluam e se reproduzam de formas mais sofisticadas, fazendo com que se torne muito difícil que uma investigação judicial, mesmo uma investigação importante, como é a Lava Jato, possa romper com elas. Para que esse rompimento aconteça são necessárias reformas profundas e uma cobrança moral da opinião pública.

CP: O que gera corrupção sistêmica? Quais são os mecanismos para combatê-la? São mecanismos que podem ser adotados a curto prazo ou dependem de fatores de longo prazo?
Vanucci: A corrupção sistêmica é gerada a partir da apropriação organizada e controlada de grandes quantidades de recursos públicos por códigos informais de conduta. Esses recursos são excluídos da comunidade e redistribuídos na forma de receitas, subornos, contratos públicos, concessões, etc., entre um círculo restrito de pessoas que pertencem à elite profissional, política, econômica e administrativa do país. As condições para o desenvolvimento da corrupção sistêmica, por um lado, são um controle e um accountability (prestação de contas, responsabilidade com a ética, transparência) deficientes em relação às políticas institucionais e sociais. E, por outro, a capacidade dos protagonistas em gerir suas atividades ilegais, ocultando a apropriação dos recursos coletivos dos outros. Existem mecanismos para combater a corrupção sistêmica. Mas, para além das reformas desejáveis e de senso comum, claramente partilhadas por quem se preocupa com a boa governança, é necessário formar um terreno político e cultural refratário à desonestidade dos que governam, que faça secar as raízes sociais e culturais da corrupção. Estes são fatores bem compreendidos por quem conhece os exemplos de países virtuosos (como os da Escandinávia), que colocam em debate a necessidade de pesados investimentos em educação pública, para incentivar o fortalecimento de uma cultura cívica e ativar os mecanismos de participação política a partir da base.

CP: No Brasil, a população demonstra desprezo pela política e os políticos, o que não se estende aos empresários e executivos envolvidos em corrupção. Cresce o discurso de que o Estado atenderia melhor as necessidades da população se funcionasse como empresa privada. E, nas eleições municipais de 2016, candidatos que se apresentaram como gestores, defenderam a diminuição do Estado ou adotaram bandeiras defendidas por grandes corporações venceram em algumas das principais cidades. Por que um lado da corrupção do sistema, o político, parece ficar com o ônus, enquanto o outro se descola do problema e avança sobre postos de comando do poder público?
Vanucci: Desde o tempo da operação Mãos Limpas, os proprietários de negócios envolvidos em corrupção na Itália também parecem, assim como no Brasil, se colocar em uma espécie de limbo moral, levando o público a suspender o julgamento sobre eles. Ou então justificando sua conduta como motivada por uma necessária busca do lucro em um contexto político poluído pela corrupção. Políticos corruptos são um alvo fácil para a raiva pública, porque eles traíram o mandato que lhes foi confiado. Esta é uma orientação não apenas injustificada, mas perigosa. Os corruptores são responsáveis pela pilhagem dos bens comuns e pela degradação da vida pública assim como os políticos e funcionários corruptos. Além disso, a aritmética da corrupção permite a comparação entre os enormes lucros ilegais obtidos pelos corruptores e os preços dos subornos pagos. Os corruptores privados pegam as maiores fatias, enquanto políticos e funcionários corruptos dividem migalhas, se considerarmos os montantes envolvidos. Na verdade, o sistema de relações com o Estado e com a burocracia em que subornos são a regra não se estabelece sozinho. Ele é criado precisamente graças ao sucesso de interesses opacos de empresários sem escrúpulos em violar a finalidade dos interesses públicos e fazer com que eles se moldem aos seus próprios interesses. Além disso, a prática de corrupção impacta profundamente a concorrência no mercado, produzindo uma distorção que acaba por premiar os piores empresários, que não investem em inovação, mas na busca de proteção política e relações de poder. E há um resultado paradoxal no qual os próprios empresários pesadamente envolvidos em escândalos de corrupção - veja o caso de Berlusconi na Itália - conseguem se apresentar na cena política como figuras imaculadas, como o novo na comparação com o antigo sistema de poder corrupto. E, portanto, como alternativas para a velha classe política, que aspiram substituir, a fim de continuar a enriquecer, roubando os recursos coletivos como antes, em uma situação de conflito de interesses e sem precisar pagar o preço que antes pagavam pela intermediação política. Por fim, promovem um modelo de administração do poder que enfatiza uma gestão privada dos recursos públicos, dando prosseguimento à flexibilização dos controles sobre os riscos de corrupção.
CP:Muitos dizem que os donos do capital financeiro acabam recebendo punições brandas, não só no Brasil, mas em todos os países, porque podem contratar os melhores advogados e têm uma capilaridade de relações nas diferentes estruturas de poder que os beneficiam. O senhor concorda?
Vanucci: Infelizmente isto é um fato. Também na Itália quem pode pagar bons advogados não se defende no processo, mas do processo, tentando atrasar exaustivamente a execução para obter a prescrição, ou ainda explorando as oportunidades da complexidade dos procedimentos judiciais. Certamente é o caso dos grandes empresários e financiadores, que, na Itália, podem contar com um elemento adicional para sua vantagem: por pelo menos duas décadas após as investigações da operação Mãos Limpas, as reformas legislativas sobre crimes de colarinho branco como crimes financeiros, corrupção, contabilidade falsa e outros andaram na direção de uma maior impunidade para os membros da elite política, econômica e financeira, com a descriminalização de certos crimes (como contabilidade falsa de empresas) e a redução do tempo de prescrição para os crimes de colarinho branco, dificultando a ação dos juízes que os investigam.

CP: Existem países com mais corrupção e países com menos corrupção?
Vanucci: Certamente há diferenças entre os níveis de corrupção em diferentes países, tão significativas que em alguns casos se refletem na capacidade dos cidadãos para reconhecer as práticas ilegais, pois acabam se acostumando, considerando-as parte integrante do costume social vigente. Além disso, os níveis de corrupção estão intimamente associados à qualidade e eficiência do Estado: um Estado que garante melhores serviços aos seus cidadãos é menos vulnerável à corrupção, pois ela é imediatamente reconhecida, isolada e condenada pelos próprios cidadãos, antes mesmo dos magistrados. A razão para as diferenças drásticas na disseminação da corrupção em diversas empresas são muitas e complexas e cada país é influenciado por sua combinação específica. Simplificando bastante, as variações refletem pelo menos três fatores. Um deles são as características da ordem institucional, de regras e mecanismos que garantam sua execução e que determinam custos e lucros esperados. Simplesmente, em alguns países a corrupção é mais conveniente porque você pode ganhar muito arriscando muito pouco. O segundo é a estrutura de valores sociais e da cultura popular, que pode gerar barreiras morais mais fortes e resistência ética a respeito do envolvimento em práticas corruptas. E, finalmente, o legado do passado: os países onde existe uma tradição de corrupção sistêmica, onde infelizmente se desenvolveu um sistema de regras não escritas que produzem convicções na inevitabilidade da corrupção e permitem a corruptos e corruptores gerirem com menos incertezas e dificuldades práticas ilegais.

CP: Quais são os principais riscos de processos como a Lava Jato, que mostram por inteiro a corrupção do sistema, mas não trazem garantias de mudanças estruturais?
Vanucci: Grandes investigações como Mãos Limpas ou Lava Jato podem, ao condenar alguns corruptos e corruptores envolvidos, remover parte da corrupção que afeta um sistema político-institucional, mas certamente não removem as causas profundas. Na ausência de robustas reformas institucionais, de uma mudança na amplitude e intensidade da participação popular, de ações de controle dos representantes políticos e do monitoramento cívico a partir de baixo, há sério risco, como aconteceu na Itália, de que as investigações de médio e longo prazo, uma vez passada a onda de prisões e julgamentos, tenham consequências negativas. Por deslegitimarem toda a classe política, todos os partidos e o sistema político-institucional, esses inquéritos criam uma profunda fratura entre representantes e representados, alimentam grande desconfiança e, portanto, podem afastar muitos da participação política e do compromisso, afrouxando assim o controle sobre os que administram os assuntos públicos. Além disso, as investigações podem determinar um tipo de processo de aprendizagem para corruptos e corruptores sobreviventes, de forma que não repitam os erros de seus antecessores. Na Itália, no ano passado, por ocasião de um escândalo, falou-se das perigosas formas de “corrupção de acordo com a lei”. Por último, devido às dificuldades em punir aqueles que integram as elites e que podem obter formas muito eficazes de defesa graças a excelentes advogados ou, até mesmo, a aprovação de leis sob medida para beneficiá-los, é possível que seja especialmente reforçado o sentimento de impunidade para membros das classes dirigentes envolvidos em irregularidades. Isso fortaleceria na população a sensação de que a prática da corrupção é quase invencível. No final, estimularia em muitos a participação ativa, mas também a conspiração do silêncio ou a resignação.

* Por Flavia Bemfica




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