Bianca Pazzini: a emergência da vacina

Bianca Pazzini: a emergência da vacina

Jessica Hübler

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Bianca Pazzini é especialista em Direito Público, mestra em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e professora da graduação e especialização da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).

Ela conversou com a reportagem do Correio do Povo sobre o anúncio da Anvisa acerca da autorização para uso emergencial e temporário de vacinas contra a Covid-19 no Brasil. A medida permite acelerar a entrada de um imunizante no país mesmo sem a finalização dos estudos. Para isso, o órgão divulgou guia sobre os requisitos mínimos.


O que significa o uso emergencial e qual o papel da Anvisa nesse processo?

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como agência reguladora do Governo Federal (que na verdade é uma entidade de Estado e não do Governo) vai estabelecer os requisitos técnicos e vai ter a competência de fazer isso em nome do Governo. É importante saber também que o Governo Federal já se manifestou no sentido de que não vai aprovar nenhuma vacina sem o aval da Anvisa, que é uma instituição técnica e que tem a “carta branca” em termos constitucionais e legais para fazer essa análise.

Quais os requisitos apresentados?

Os requisitos são bastante calcados naquilo que a orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) tem tentado prescrever. São requisitos de ordem geral quanto à confiabilidade da empresa, quanto a vacina ser, num primeiro momento, liberada em caráter de teste, portanto acho que ainda não está no horizonte o uso generalizado da vacina. Todos os requisitos foram apresentados com transparência pela Anvisa e estão baseados em outros documentos da própria agência, que foram criados a partir da Portaria 1.741/2018 que estabelece o procedimento para fazer análise e aprovação de medicamentos e vacinas de modo geral.

Como a atuação da Anvisa está orientada?

A postura (da Anvisa) de modo geral tem sido guiada pelo Regulamento Sanitário Internacional (RSI), pelo documento da OMS que indica em 2020 a emergência sanitária internacional da Covid-19. Foi justamente o documento que deu embasamento para a edição da lei 13.979/2020, que decretou o Estado de Emergência Sanitária Nacional. Os documentos têm se respaldado um no outro, é visível que está tendo uma análise jurídica disso tudo. Percebemos uma atuação bastante autônoma da Anvisa em relação aos pronunciamentos de modo geral. Tudo isso está condicionado a uma deliberação por uma diretoria colegiada da Anvisa e não de uma autoridade máxima como o diretor-geral, por exemplo.

Quais podem ser as especificidades de uma autorização de vacina em caráter emergencial?

A autorização que Anvisa poderá conceder para uma vacina será do uso emergencial, não é definitivo portanto. O que significa que, se é emergencial, não pode ser produzido de modo generalizado no país. Tem que ser feito um teste em uma população alvo a ser consolidada e a vacina também poderá ser retirada de circulação pela Anvisa a qualquer momento. Nessa autorização não é permitida a venda ou a comercialização em massa. Até o momento não fica claro se vai ser fornecido com algum custo ou não para o Estado Brasileiro, mas em princípio sim, já poderia haver uma primeira compra para esse teste. O Governo Federal já liberou R$ 2 bilhões para uma das empresas. (O anúncio foi feito em agosto pelo presidente Jair Bolsonaro, os recursos serão destinados à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem acordo com a farmacêutica AstraZeneca para compra de lotes e transferência de tecnologia da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido). Por se tratar de uma autorização provisória, a Anvisa não precisa necessariamente manter a vacinação, a definição está calcada na declaração de emergência, não é uma determinação ordinária, portanto poderia ser concedida com o medicamento ainda em fase experimental.

Como nenhuma das vacinas terminou a fase de testes, quais seriam os riscos?

Isso é o mais delicado, pois haverá uma autorização sem o consenso científico que a própria Carta da OMS determina como algo necessário para autorizar a utilização de um medicamento, de qualquer natureza: ele precisa de evidências científicas. Além disso, para que isso aconteça, a Anvisa também determina que a empresa deve passar por algumas etapas internas. A autorização deverá ser concedida somente para a empresa que está desenvolvendo a vacina, deverá haver uma reunião entre a Anvisa e os representantes da empresa em que serão apresentados os motivos para aprovação. Em termos técnicos ainda a empresa deverá fornecer um “dossiê” do desenvolvimento científico da vacina e a demonstração de que aquela vacina está na 3ª fase de andamento. No caso, todas as vacinas que estão sendo testadas no Brasil já estão nessa fase. 

O que ocorre após a autorização?

Conforme o documento da Anvisa, depois que houver autorização para produzir e encaminhar a vacina para uso, a empresa também deve se comprometer em manter a qualidade das vacinas, orientar o serviço de saúde sobre armazenamento e aplicação, além de monitorar eventos adversos e recolher as vacinas, caso a Anvisa determine. Os eventos adversos graves relacionados ao uso da vacina também devem ser comunicados à Anvisa em até 24 horas da ocorrência e a licença pode ser suspensa a qualquer momento. Também foram elencados requisitos bem pontuais no sentido de rotular a vacina como uso emergencial, sempre que alguém for vacinado é preciso que seja assinado um termo de concordância com a vacina, o que também vai de encontro a uma orientação da OMS. O que é curioso é que no anexo 6 do Regulamento Sanitário Internacional há uma determinação de que as vacinas sejam aprovadas pela OMS, ou seja, parece que não basta o governo brasileiro aprovar, pois a OMS também deverá aprová-la. 

Qual o papel do Estado na garantia de uma vacina em caráter emergencial?

No meu entendimento são dois papéis principais. Primeiramente o papel de garantir o acesso com menor custo possível em termos de orçamento público, então também garantir um acesso de modo que não quebre o Estado e de modo a realmente prever e garantir o interesse público sobre os interesses privados, considerando o aspecto de emergência internacional e nacional, o estado tem que pensar na população e não nas negociações comerciais. É válido avaliar a possibilidade de quebra de patentes e a questão de diminuir os custos, para que essa vacina chegue ao Brasil da maneira mais satisfatória possível, fomentando universidades e laboratórios públicos para implementar a vacina no estado brasileiro. 

Além desse papel de garantir o acesso à vacina, de maneira equitativa, garantir quem sabe em primeiro lugar nas populações periféricas, onde o vírus se agrava e as pessoas notadamente morrem em maior número. Esses são os principais aspectos: dar o acesso efetivo e com segurança. Não basta por alguma negociação econômica dar acesso de um medicamento que não é seguro, é o momento de se voltar para a ciência, isso é muito preponderante nesse momento crítico. O Estado tem sim o dever de garantir a saúde, não só como uma resposta hospitalar, não só como uma resposta de contingência, mas uma resposta mais ampla, de dar condições de qualidade para acesso à saúde. É um direito universal. Os dois aspectos mais delicados são: vislumbrar uma alternativa que não onere o estado a ponto de comprometer outras políticas públicas e a qualidade dessa resposta.

Deve haver algum regramento específico para a comercialização e a distribuição das vacinas autorizadas em caráter emergencial?

A Anvisa até onde eu sei, dos posicionamentos, não se manifestou nesse sentido. Em princípio seria num primeiro momento um comércio limitado, mas não especifica em que sentido. Me parece que os governos seriam os principais clientes e podemos pensar em uma distribuição para população de baixa renda, mas não há restrição. Poderia ser para uso também de natureza privada , poderia ser comercializada. Essa incerteza gera um risco complicado de que chegue primeiro nas zonas de maior poder aquisitivo, sem qualquer plano de governo para o direcionamento da vacina que porventura possa ser aprovada.

Há uma preocupação muito grande nesse sentido. Temos um problema sério no Brasil, pois as políticas públicas de um modo geral, são políticas de governo. Apesar de a Constituição Federal prever a saúde como um direito social, dependemos muito das boas vontades dos governos. Mas sobre o encaminhamento específico da vacina da Covid-19: não há uma regra ou diretriz geral no sentido de que isso ocorra junto às periferias, o que é absolutamente preocupante. Não consigo ser otimista quanto a uma distribuição equitativa, teria que começar pelas periferias, mas nada disso está definido. A única coisa que há é um Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PL 4023/2020) que pretende priorizar a distribuição para abranger em primeiro lugar os chamados grupos de risco, independentemente de classe social ou acesso ao SUS. Mas isso também não está definido, pois depende de sanção do Presidente da República.

É possível que a Anvisa libere a vacina mesmo sem um plano de encaminhamento definido?

Sim. Em princípio não há essa política de encaminhamento. O que poderia ser feito, por exemplo, é uma atuação no Poder Legislativo, em que o Congresso Nacional poderia elaborar propostas para criar essa lógica de distribuição. O próprio Poder Executivo poderia também, complementando por decreto outras normas do Sistema Único de Saúde (SUS) por exemplo, dependeria somente de vontade política. Do ponto de vista do Estado brasileiro: temos a crônica da morte anunciada. Há grandes chances de tal discussão ser submetida à análise do Poder Judiciário, através de ações de algum poder político material como sindicatos ou movimentos sociais. E até mesmo por parte da atuação do Ministério Público, como fiscal da lei, que poderia tomar medidas como uma Ação Civil Pública, ou uma medida nesse sentido. Nem todos os juristas acharão uma coisa boa, se entende que é o Executivo que deve fazer esse tipo de implementação de política. Se isso não for sinalizado pelo Governo Federal, quero crer que o Poder Judiciário vai começar a ser provocado. Isso pode até respingar no Supremo Tribunal Federal (STF), que pode emitir uma decisão uniformizadora e obrigar o estado a encaminhar um plano detalhado. O fato é que uma obrigação de distribuição não existe, mas os governos estão manifestando posturas de querer adquirir a vacina para o SUS. Não é ser obrigado a adquirir, é querer. Podemos acreditar que haverá distribuição pelo SUS, mas isso será por vontade política e não por obrigação jurídica. 

O Estado pode obrigar a vacinação contra a covid-19, após a aprovação de um imunizante pela anvisa?

Não há possibilidade de obrigar, inclusive a OMS se manifesta no sentido da liberdade individual para aceitar vacinação. Claro que o Estado deve tomar as medidas mínimas de limitação dos indivíduos para as questões nas suas liberdades individuais. O Estado em princípio não pode obrigar uma pessoa a ser vacinada, mas pode tomar providências, diante de uma emergência sanitária como a que estamos vivendo, de limitar a circulação por exemplo, como já vem sendo feito pelos decretos municipais e estaduais. Ou uma medida muito extrema como o próprio bloqueio total (lockdown). São medidas drásticas que podem ser tomadas, mas para obrigar a vacinação não existem medidas específicas. A rigor é possível criar algum mecanismo de vacinação em massa, incrementar campanhas por meio das mídias veiculadas pelo governo, destacar a importância do ato de vacinar e também é possível implementar alguma norma que “obrigue” a vacinação: ou vacina ou terá alguns direitos limitados. Por exemplo, a pessoa que não for vacinada terá a circulação restrita nas ruas. Pode ser criada uma lei que determine que a pessoa carregue o atestado de vacinação para circular. Isso seria possível a partir de um projeto de lei encaminhado no Congresso Nacional. 

Como fica a atuação dos estados quanto à vacinação? É possível que cada estado comece a adquirir e distribuir vacinas de forma local?

As três esferas principais de poder no Brasil são: a União, os Estados e os Municípios. Todas elas têm bastante autonomia administrativa para realizar políticas públicas de saúde e ações análogas. Isso, é claro, só vai ser possível se a Anvisa aprovar e liberar alguma das vacinas. A Anvisa responde pelo estado brasileiro. Apesar de ser uma agência reguladora da União, é ela quem vai centralizar esse tipo de autorização. Essas compras (dos estados) são em alguma medida favoráveis. Mas é preciso que fique claro: não fica a cargo de chefes de executivos locais, autorizarem uma vacina ou tomarem medidas foram daquilo que a Anvisa determina ou permite. A autonomia para compra e distribuição, depois que uma vacina for autorizada, existe. Até fica a cargo dos governos descentralizados colaborarem no sentido de combater o vírus, vai ser importante que isso aconteça.

E quanto à ideia da quebra de patentes e redução dos custos?

Há um projeto de lei da quebra de patentes, é o PL 1462/2020. Uma proposta que nasce justamente vinculando já a emergência sanitária nacional declarada pela Lei 13.979. A ideia do projeto seria alterar o artigo 71 da lei que regulamenta o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual. Seria a permissão da quebra de patente, do pagamento desses direitos autorais exclusivos de quem criou a vacina pelo tempo que permanecer a emergência de que trata a Lei 13.979. É um jeito de diminuir muito os custos para distribuição da vacina. O Congresso Nacional tem discutido a ideia. Se for aprovado, vai passar para ratificação do presidente Jair Bolsonaro e se ele não aprovar (o presidente já se posicionou e disse que não seria favorável a isso), ainda voltará para o Congresso, onde o veto pode ser derrubado. Essa é uma demanda que tem sido mais forte até fora do Brasil. No final de novembro, sobretudo países emergentes, já apresentaram requerimento sobre a quebra de patentes junto à Organização Mundial do Comércio (OMC), que é quem regulamenta o comércio internacional como um todo.

O Brasil pode ser forçado a autorizar alguma vacina? Ou então é possível que nenhuma seja liberada?

Não haverá determinação externa por conta da autonomia do país, a não ser que haja alguma negociação específica. De qualquer forma não consigo verificar no horizonte alguma possibilidade de daqui a pouco Organização das Nações Unidas (ONU) por meio da OMS obrigar a aprovação, pois isso fica bem nos limites da soberania do país. O que funcionaria (e muito) é a questão do boicote. Caso o Brasil não aprove uma vacina, é possível que outros países fechem a fronteira para brasileiros, não autorizando viagens por exemplo e até mesmo entrada e saída de mercadorias. Não acho que haja o risco de ficarmos muito atrás dos outros países por motivos até de interesse do comércio internacional. Essa aceleração do processo poderá ser motivada mais por medo da OMC do que por medo da OMS, digamos assim.


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