Carlos Alberto Gianotti: O cansaço das demandas

Carlos Alberto Gianotti: O cansaço das demandas

Por Henrique Massaro

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Professor escolar e universitário de física, matemática e cálculo por aproximadamente três décadas e quase outras três trabalhando como editor de livros, aos 75 anos, Carlos  Alberto Gianotti se diz um generalista. Apesar de sua formação nas ciências exatas, sempre se considerou alguém do campo das humanidades. A paixão e o interesse pela leitura lhe levaram a fundar, em 1993, a editora da Unisinos, onde ainda atua como editor, principalmente nas áreas de filosofia social e comportamento. 

Também como consequência da leitura, veio a escrita de artigos, boa parte deles sobre o universo do trabalho. Foi o que o levou a ser um dos palestrantes do 22º Congresso de Stress da ISMA-BR (International Stress Management Association no Brasil), que será realizado de 21 a 23 de junho, no Plaza São Rafael Hotel, em Porto Alegre. Inicialmente, Gianotti recusou o convite, “por questão de honestidade intelectual”, em virtude de tantos especialistas no tema reunidos. A coordenação do evento, no entanto, insistiu. O principal motivo foi um artigo publicado por ele em 2017, intitulado “Estamos todos sofrendo o cansaço das demandas”.

Como esse tema surgiu, por que se interessou?
Escrevi há muito tempo, há cerca de 20 anos, um artigo no antigo jornal da USP, intitulado “Trabalha-se para quê?”. Também escrevi, no jornal O Estado de São Paulo, na mesma época, outro artigo sobre trabalho, que dizia que trabalho não é lugar para ser feliz. Eu me ocupo da sociedade contemporânea e o comportamento absurdo e irracional nessa sociedade, no mundo consumista, e é uma coisa sem solução. Sou um diletante, não sou um pesquisador, um acadêmico. Depois, contestaram meu artigo, tive que fazer uma tréplica. Sempre me ocupei dessa parte do comportamento humano, da tecnologia, do que se tem. Não sei por que \[esse assunto interessou\], veio porque veio. Fui me interessando, gente que fui lendo. As coisas que escrevo estão em torno disso, mais ou menos. Seria um comportamento humano nesse mundo. Analiso não unilateralmente. Se olhares o texto que escrevi (em 2017), vais ver que é um texto bilateral e plural, não é uma coisa taxativa. Só tenho dúvidas, não tenho verdades.

O que é ‘o cansaço das demandas’?
Primeiro, o que são demanda? As demandas que tu tens são solicitações que tu podes ter para cumprir ou podes solicitar a alguém alguma coisa. Então, a demanda é uma palavra, um vocábulo, que teria duas vias. Se olhares o entorno da tua vida, tens as demandas de trabalho, pessoais, de casa, sociais – que são de outra natureza –, obrigações, coisas a serem cumpridas, fora demandas como responder ao WhatsApp. Então, tens múltiplas demandas a desenvolver e tens que cumprir ou repassar a outros. Só que o mundo está tão absurdo que vives com esse conjunto de demandas como se fosse uma coisa natural e é claro que tu te cansas e nem te dás conta.

E, na comparação com o início dos anos 2000, que foi quando começou a falar sobre este assunto, essas demandas aumentaram e muito.
Sim, tivemos um aumento absurdo. E de quando eu era criança, tinha meus 10 anos e observava o trabalho lá no meu mundo, aumentou muito mais. Quem diz que é feliz trabalhando não sabe o que é felicidade. Lugar de trabalho é lugar de cumprimento, de fazer coisas e ir embora depois.

Qualquer trabalho?
Qualquer trabalho. Fazendo um paralelo: já viste esses caras que correm na rua e dizem que corrida é uma maravilha? Estão todos mentindo. Corrida é disciplina, fazer exercício físico, musculação, é disciplina. Freud é taxativo nisso no seu melhor ensaio (“O Mal-estar da civilização”, de 1930). Não sou freudiano, mas admiro certos ensaios de Freud, certamente um dos maiores ensaístas de todos os tempos. Ele diz que o ser humano é avesso ao trabalho.

Estamos mais cansados?
Não é cansaço físico, acredito que estamos mais exauridos. Nem notamos, é como se estivéssemos meio entorpecidos por tudo isso. De repente, chega um negócio pelo celular e vamos ler. Em meio a tudo isso, vamos fazendo as nossas vidas. Estamos sempre recebendo de tudo o que é lado esse tipo de coisa, temos demanda de todos os lados e isso nos enche o espírito. (O cansaço) pode ser físico também, claro que pode, mas, para além do físico, temos, especialmente, um cansaço espiritual. Não vou dizer mental, porque seria excessivo. É um cansaço do espírito, mas, ao mesmo tempo, não desligamos, estamos sempre no WhatsApp, temos demanda a todo o momento.

Como frear isso? Se é que existe como.
Não sei, não vejo como isso vai mudar, vejo quase como um destino, uma circunstância que vai surgindo. Não tenho redes sociais, cheguei no WhatsApp e parei. Não tem como frear isso, faz meio parte da sociedade de consumo, dessa sociedade globalizada, está em tudo o que é lugar, essa coisa da produção, do trabalhar, do fazer.

Existe uma glamourização do trabalho?
Tem que ter, para a turma poder produzir, para ter uma produtividade espantosa, inclusive, de coisas que nem precisamos. Produzimos coisas em excesso, as pessoas não precisam de tanto. Para ter essa produtividade, temos a glamourização do trabalho e as pessoas visam ao poder. Temos vaidades, pretensões de crescer, de aparecer e isso é uma glamourização do fazer.

Como as novas gerações se veem frente a este dilema?
Primeiro que as novíssimas gerações, que estão na pré-escola hoje, o teu neto, por exemplo, tu não sabes se ele vai cursar faculdade, universidade, mas é certo que, nos moldes que tu cursaste, ele não vai cursar, mas também é uma grande dúvida se isso será o destino, se a universidade permanecerá como nós sempre a conhecemos. Portanto, as novas gerações serão completamente diferentes do que é um homem de 40 anos hoje. Dei aula durante 21 anos no Colégio Anchieta, comecei lá em 1972, dava aula para alunos do 3º ano do Ensino Médio, na época chamado de 2º grau, pré-vestibulandos. Dei aula para uns 4 mil alunos. Quando chegou ali por 1983, pouco mais de dez anos que eu tinha começado, lembro que comentei com colegas mais antigos que as pessoas para as quais estávamos dando aula eram completamente diferentes. “É outra gente”, me lembro de dizer. Não eram nem melhores nem piores, eram diferentes. Se me convidarem para dar uma palestra sobre educação hoje, não dou, porque estou afastado. Tudo mudou, o aluno mudou, a metodologia na escola mudou, a gurizada de 17 anos para quem eu dava aula é completamente diferente. Com a tecnologia que começou a se desenvolver, parece que é uma geração diferente, está inserida nesse mundo digital. Esses caras não vão ter o mesmo tipo de universidade, de formação, não vai ser equivalente e o mundo do trabalho não vai ser equivalente. No meu campo editorial, o que evoluiu só na parte de diagramação de livros e preparação para impressão foi uma coisa impressionante nesses anos em que estou atuando.

Quais as consequências do cansaço das demandas?
Dor nas costas, alergia, enxaqueca, a angústia que sentimos de manhã, ansiedade, coceira, gripe, tudo isso. Para mim, são efeitos colaterais de uma vida absolutamente demandada de trabalho. Isso são efeitos colaterais, sintomas físicos que a medicina chama de somatização. Também há uma consequência física no indivíduo para além do cansaço. Teria uma espécie de adoecimento, abrindo as portas para o adoecimento de toda essa vida de trabalho exacerbado.


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