Covid: gatilho para a depressão

Covid: gatilho para a depressão

Por Luciamem Winck

Luciamem Winck

"Não penso que a Covid-19 tenha desencadeado uma pandemia de saúde mental no Brasil ou em qualquer outro país. Penso que agravou aquilo que já estava ocorrendo, mas que a sociedade não tinha tempo de perceber."

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O psiquiatra e especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria, José Adolfo Cerveira, avalia que a pandemia da Covid-19 veio acompanhada de solidão, medos, incertezas e angústias. Para muitas pessoas, foi o gatilho para a depressão. Vice-diretor do Corpo Clínico e coordenador da Unidade de Psiquiatria de Ligação do Hospital Ernesto Dornelles, Cerveira observa que não apenas os índices de depressão aumentaram, mas também da maioria dos transtornos psíquicos, como ansiedade e abuso do álcool. O médico, que atua também na Oncologia Kaplan e no Centro Vitta de Radioterapia e é professor de Interconsulta Psiquiátrica no Centro de Estudos José de Barros Falcão, observa ainda que mesmo antes do surgimento da Covid-19, os psiquiatras projetavam que o Século 21 seria o "Século das Doenças do Vazio".

Uma recente pesquisa do Ministério da Saúde apontou que Porto Alegre e Belo Horizonte são as capitais líderes em diagnósticos de depressão no país. A pandemia e a crise econômica que se instalaram no país podem ter acionado esse gatilho? Por quê?

Certamente. Tanto a pandemia quanto uma crise econômica possuem isoladamente potencial para precipitar sintomas depressivos, ou depressão, assim como agravar a depressão já existente. Se lembrarmos que entre os sintomas de depressão encontramos tristeza, sensação de vazio, desesperança, humor irritável, perda de interesse e do prazer, insônia ou sono em excesso, cansaço ou falta de energia, assim como pensamentos autodepreciativos e de morte, o que inclui de suicídio, entre outros, entenderemos que tudo aquilo que pode precipitar ou reforçar esses sintomas tem relação direta com a depressão. Muitas pessoas viram-se desempregadas frente à pandemia, que agravou a crise econômica. Mesmo entre aqueles que não perderam o emprego, o nível de vida decaiu. Independente de questões econômicas, a pandemia afetou a todos emocionalmente e de forma significativa. O isolamento social vai contra a estrutura básica da sociedade, que é a coexistência em grupo. Devemos lembrar que o ser humano já nasce inserido em um grupo, a família, e com o decorrer da vida vai se inserindo em outros e fortalecendo ou refazendo os laços preexistentes. Isoladas, de maneira geral, as pessoas viram-se frágeis e obrigadas a conviver com a solidão. Além disso, houve a perda dos entes queridos: familiares, amigos e conhecidos. A pandemia não seguiu protocolos. Não poupou ou diferenciou jovens ou pessoas hígidas. Isso fez com que as pessoas precisassem encarar a fragilidade da existência humana e o medo de nunca mais reencontrar aqueles que amavam.

Quando o Ministério da Saúde detecta esses índices alarmantes a gente se pergunta: o que está acontecendo?

Muitos são os fatores que podem justificar os índices. Hoje entendemos e falamos muito mais sobre a depressão do que no passado. O preconceito em relação à saúde mental ainda existe e é maior do que nós, psiquiatras e demais profissionais da saúde mental, gostaríamos. No entanto, a sociedade percebe os prejuízos que chegam acompanhados do preconceito e está gradativamente cedendo à necessidade de aceitação de doenças como a depressão. Por isso, hoje diagnosticamos mais. Há também os fatores que predispõem ou agravam a depressão, como altos níveis de estresse do dia a dia, falta de atividade física, isolamento ou dificuldade de relacionamento social, além da falta de espiritualidade e da prática da religiosidade, entre outros. Não podemos esquecer que em nossa sociedade há também certa intolerância frente à diferença de opinião e pensamento. Isso por vezes afasta as pessoas e quebra vínculos, podendo reforçar o sentimento de solidão ou de não pertencimento, muito comum entre adolescentes. 

Recentemente, a Organização Pan-Americana da Saúde afirmou que há uma pandemia de saúde mental em curso no continente em razão do aumento de casos de depressão e ansiedade devido à Covid-19 e pediu o reforço dos sistemas de atenção neste campo. A Covid-19 realmente fez desencadear uma pandemia de saúde mental?

Mesmo antes do surgimento da Covid-19, já sabíamos e falávamos que o Século 21 seria o Século Doenças do Vazio, como a depressão. Não penso que a Covid-19 tenha desencadeado uma pandemia de saúde mental no Brasil ou em qualquer outro país. Penso que agravou aquilo que já estava ocorrendo, mas que a sociedade não tinha tempo de perceber. Com a pandemia, a sociedade foi parada. O indivíduo se viu forçado a olhar para dentro de si, a enfrentar suas dores, inseguranças, tristezas e assim começou a se identificar e a identificar a dor e o sofrimento no outro e a reconhecer os sintomas de doenças como a depressão.

A pandemia pôs em risco o desconforto psicológico de todos nós?

O desconforto penso que não. O conforto psicológico sim. A insegurança, medos, anseios, solidão e tudo aquilo que veio junto da pandemia fez com que todos saíssem da zona de conforto. Prova disso é que não apenas os índices de depressão aumentaram, mas também da maioria dos transtornos psíquicos, como por exemplo ansiedade e abuso de substâncias, em especial álcool.

Quais aspectos emocionais negativos da pandemia? Houve algum positivo?

A lista dos negativos é grande. Podemos citar os mais prevalentes: solidão, medos, incertezas, angústias, saudades daqueles que partiram, aumento da dependência de substâncias (lícitas ou ilícitas), perdas que geraram traumas, sensação de fragilidade e impotência. Acredito que para algumas pessoas houve sim aspectos positivos. Elas aprenderam a valorizar mais aqueles que as cercam. Aprenderam o valor inestimável do momento de estar com alguém, a importância da família, do contato, do carinho e do abraço. Alguns reencontraram sua religiosidade, sentindo-se amparados e acolhidos. Há quem tenha reavaliado questões de vida e atribuído novos valores ao que antes lhe passava despercebido.

Perder dois anos de contato social pode ser prejudicial aos jovens e idosos?

Certamente. É difícil falar ainda do impacto e consequência a longo prazo que o isolamento social pode acarretar, em especial nos jovens. Muitas crianças que nasceram durante ou próximo da pandemia só tiveram contatos com outros familiares ou crianças (exceto irmãos) com quase 2 anos. Crianças maiores e adolescentes necessitaram agarrar-se ao mundo digital para não perder o contato com amigos e colegas. Muitos, com o fim do isolamento e atenuação dos reflexos da pandemia, apresentam dificuldades para reinserção social, desconectado do mundo digital. Porém, para muitos idosos, o afastamento foi devastador. Muitos perderam o contato com filhos e netos, perderam amigos e familiares que sequer puderam velar. Há lutos não elaborados e consequentemente o prolongamento do sofrimento que vem com a perda.

Esse modo como as pessoas têm se relacionado preocupa? As relações sociais estão quebradas por uma relação mais de tela, computador e celulares. 

Sim, embora saibamos que a tecnologia on-line, em se tratando de relacionamentos, tenha vindo para ficar, o contato físico é essencial para a manutenção e o desenvolvimento de uma condição mental saudável.

Por que as mulheres foram as mais afetadas?

Mesmo fora do contexto da pandemia, as mulheres tendem a ser mais afetadas pela depressão do que os homens, sendo uma proporção de 2 por 1. A pandemia acentuou esse fato. Com ela, houve aumento dos índices de violência doméstica e feminicídio. A reclusão social fez com que muitas mulheres se sentissem ainda mais indefesas frente ao agressor. Reclusão e medo de sair às ruas fizeram com que muitas sequer denunciassem os agressores.


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