Criolo: "Parem de tratar nossa geração como se os jovens não tivessem força para lutar"

Criolo: "Parem de tratar nossa geração como se os jovens não tivessem força para lutar"

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Artista acaba de lançar Artista acaba de lançar "Espiral de Ilusão", que explora o samba | Foto: Gil Inoue / Divulgação / CP


Depois de se consagrar no Brasil com os discos “Convoque Seu Buda” e “Ainda Há Tempo”, Criolo se reinventou e canalizou suas energias naquilo que considera a "música tipicamente brasileira", o samba. Lançado no final de abril, seu novo álbum "Espiral de Ilusão" é composto por 10 canções do gênero e remete às composições antigas de João Nogueira e de Cartola. Se o samba pode ser considerado o símbolo da felicidade, o paulista de 41 anos rompe essa concepção e traz melodias saudosas e letras com o seu discurso social bastante forte. A turnê de divulgação do disco começa neste sábado, em Porto Alegre, como uma apresentação no Auditório Araújo Vianna (Osvaldo Aranha, 685) às 21h30min. Os ingressos custam entre R$ 70 e R$ 150 e estão à venda pelo site. Em entrevista ao Correio do Povo, o artista fala sobre a mudança de estilo, suas influências no samba e o momento político do país.

Correio do Povo: Criolo, tu já falaste que a ideia de escrever samba surgiu há muito tempo e ficou guardada na tua cabeça. O encarte do disco traz a frase "O samba não é quando você quer, é quando o seu coração está preparado”. Por que fazer um disco só com músicas do gênero neste momento?
Criolo: Do meio do ano passado pra cá, por causa do que vinha vivendo, fui realizando várias etapas da minha vida, nas quais as composições vieram em forma de samba. Então realmente não é quando a gente quer, mas quando as energias vão se juntando a outras energias e isso acabada desaguando. Foram vários momentos de me encontrar no samba e isso foi se acumulando até que em outubro do ano passado tive sorte de me reconectar com os todos esses em que o samba me visitou e aí nasceu esse disco. O samba é muito bom, é se permitir viver, se permitir sentir o que as pessoas que estão ao seu redor estão vivendo, estão em comunhão, na mesma energia. Então é lindo para mim. Hoje nós olhamos muito mais para as telas dos celulares do que para os rostos da pessoas.

CP: Existe alguma diferença entre compor samba e rap?
Criolo: Olha, rapaz, a emoção vem do mesmo jeito pra mim. A diferença mesmo é a sonoridade, mas a energia e o processo do que me inspira, a vida, são os mesmos. Algumas canções eu compus especialmente pra esse trabalho, mas outras já estavam prontos de algumas ocasiões da vida. E a aceitação tem sido muito boa, tenho recebido sempre mensagens positivas, pra cima, felicitações. Tem sido uma grande e boa surpresa.

CP: O disco flerta com diversas vertentes do samba, com um toque muito nostálgico, que muitas vezes lembra João Nogueira e Cartola. Quem são influências deste trabalho?
Criolo: O disco é muito fruto da influência lá de casa, dos meus pais, daquilo que eles escutavam e escutam, então tem muita memória afetiva e musical. A sonoridade vem desse lance. Minha mãe sempre gostou muito de seresta, de viola, de canção. E meu pai curtia isso, além de samba de breque, de embolado. Isso tudo ficou guardado no meu emocional. Tem um samba que eu escrevi que foi pro álbum "Convoque seu Buda" que eu tava lá em casa com a minha mãe dormindo na sala e tinha um colchão inflável. Ela acorda sempre muito cedinho e saiu pra comprar pão e na hora que ela voltou, me deu um chute e falou "oh rapaz, o padeiro não foi trabalhar, a avenida tá travada, você vai ter que fazer um samba, entendeu?". As pessoas estavam na rua lutando pelos seus direitos e daí veio tudo na minha cabeça e nasceu aquela brincadeira: "Hoje eu vou comer pão murcho / Padeiro não foi trabalhar". Eu lembrei quantas vezes eu estava desempregado, ou então quando eu ia pro trampo, tinha uma greve e eu tinha que ficar em casa sem ter como explicar por que não tinha ido. Hoje tem internet, é tudo mais fácil, mas na minha época era orelhão de ficha, então você ia pra avenida principal e ficava lá 30, 40 minutos na fila pra tentar ligar e explicar a situação. Essas coisas se agrupam na mente e a gente não esquece mais. O "Espiral de Ilusão" é a mesma coisa, não tem alguém especial que me inspira, mas os pequenos acontecimentos da vida.

CP: O primeiro show da turnê que apresenta esse novo álbum acontece aqui em Porto Alegre. Como está estruturado o novo show?
Criolo: O meu pensamento é de chegar aí e celebrar o samba que eu tenho vivido durante toda a minha vida. Cantar o "Espiral de Ilusão", mas chegar fazendo surpresas também, cantar outras coisas de outras pessoas e tentar me organizar de um jeito muito bacana pra realmente celebrar o samba.

CP: Apesar da mudança do rap pro samba, tuas músicas continuam falando sobre temas políticos e sociais, uma constante no teu trabalho.
Criolo: A luta nossa diária, a luta do nosso bairro por melhorias, eu cresci vendo isso. Não só a minha mãe, mas várias outras mães de famílias, batalhar lá no Grajaú dos anos 1980. Todos os dias tinha essa luta para ver ver um sorriso no rosto, ter alento, um pouco de felicidade. A minha mãe é uma pessoa que dedica sua vida a criar multidões pra se pensar, pra confraternizar, para encontro dos jovens, então isso acabou sendo um coisa natural. Quem cresce num ambiente muito hostil tem uma criatividade apurada todos os dias e isso pra mim veio em forma de fazer música, de escrever. Desabafar através do rap e agora do samba, porque música é libertação. Então por ter esse olhar e por ter vivido algumas coisas que eu vivi - e que a grande maioria dos brasileiros vive - eu sempre vou falar sobre isso.

CP: Nós percebemos muito essa questão social no rap, no hip hop, mas o samba muitas vezes está ligado às noções de alegria, de felicidade. Tu achas que falta um engajamento maior dos sambistas, já que o gênero tem um apelo popular?
Criolo: Às vezes a pessoa faz um tipo de som, mas, no dia a dia dela, faz uma série de ações que a gente não sabe porque a gente não está convivendo. Então não podemos chegar e cobrar dela um jeito de ser. A música é feita justamente pra te libertar de como as pessoas falam que você deve ser. Eu acredito que você se expressar, dar as suas opiniões e a sua contribuição é particular de cada um, independente do gênero que você canta. Eu vejo que Brasil, de forma geral, as pessoas têm dado um jeito mostrar o seu papo, não querem deixar as coisas passar batidas. Eu acredito que cada pessoas tem o direito de viver a vida como ela quer. A gente não pode esperar delas o mínimo que a gente já tem. Existem mil jeitos de levar a vida, de canalizar as energias do seu coração, da sua alma. Cada um tem o direito de viver como bem entender, lógico que dentro de um ambiente onde ninguém vá invadir o espaço do outro. Ninguém pode machucar ou prejudicar o outro para que o seu ambiente seja o mais legal possível.

CP: Na última semana, quando a crise no Brasil se reinstaurou, a letra de "Menino Mimado" logo começou a ser muito compartilhada nas redes sociais. A música é inspirada em algum governante especificamente ou em uma situação generalizada?
Criolo: Faz parte de um sentimento, porque o momento em que a gente vem vivendo, pelo que eu entendo, eu vivo desde criança. Sobre a viralização  da letra, é um sentimento que faz com que as pessoas vão se identificando e passando pra frente. O grande lance é que a gente não aguenta mais e temos avisado. Tem mandado recado, pedido diálogo, implorado por isso. O Brasil pode ser melhor, poder ser positivo, bacana, pra frente. Pode ser moderno, tudo de bom. Parem de tratar nossa geração como se os jovens não tivessem força, alma e vitalidade para lutar por dias melhores. Eles nunca nos escutam, porque os interesses são opostos e isso tem ficado cada vez mais escancarado. E tudo isso resulta em energias e sentimentos.

CP: A juventude tem se mostrado, de fato, forte e ido às ruas para protestar, isso é inegável, por mais que se tente falar o oposto. Tu percebes que os jovens de hoje estão mais engajados?
Criolo: De forma alguma. Sempre fomos inquietos, mas agora a gente consegue se comunicar mais por causa da tecnologia. Essa turma sempre esteve lutando. E essa luta se dá em vários sentidos. A luta é por uma nova força motriz, geradora, de criação, de união, fraterna, criativa. Tudo isso é luta, agente de modificação. Tudo isso provoca outro estado no qual as pessoas minimamente se respeitem, se aceitem, ponderem, saibam enxergar no outro a beleza total que todo ser humano tem.

CP: Tu és um dos artistas que vai participar do show pelas Diretas Já em Copacabana no domingo. Qual é a importância de nomes como o teu, o do Caetano e o do Mano Brown se posicionarem?
Criolo: Eu tô indo lá dar uma mínima contribuição dentro de tudo isso porque eu enxergo que não estou fazendo nada de diferente do que quem quer o bem do mundo esteja fazendo. Então é isso, vamos lá dar nossa contribuição porque chegou num ponto que, meu Deus, o que que vai ser da gente? A gente se unir pra ter coisas boas independe da cor que você gosta, de que lado você está. Está caindo a ficha das pessoas de que não importa o lado que você defende, porque os caras que têm o poder têm o lado deles. E do outro tem a gente. E eles criam uma série de situações pra gente lutar contra a gente enquanto se fortalecem, se cristalizam e ficam dando risada. Rindo do trabalhador de um país triturado que vive uma gangrena social que não é de hoje mas já vem de décadas. O fortalecimento de falta de colaboração, de diálogo, de humanidade é perigoso porque no meio dessa crise passa ideia de que existem lados entre a gente, mas no final de tudo, existe somente o nosso e o de quem tem poder. É assim, separar para enfraquecer, sempre foi assim.

CP: Falando especificamente sobre São Paulo, o momento é de mudança e uma das questões que sofreram importantes alterações foi a Virada Cultural. Que balanço tu fazes das modificações que o evento sofreu e da edição deste ano?
Criolo: É uma questão bastante complexa para eu analisar, é difícil falar sobre, mas eu posso dizer que a cidade reflete as ações das pessoas que a governam. E nós que aqui vivemos recebemos o reflexo desse reflexo. Ainda estamos tentando entender tudo isso que está rolando. Eu sinto que poderia ser bem melhor.

CP: E, mesmo assim, ainda existe amor em São Paulo?
Criolo: Quando eu fiz essa canção, eu justamente falava da falta de humanidade das pessoas que cuidam da cidade, da falta de atenção com a população. Porque aqui tem um bocadinho de gente de cada lugar do Brasil, que veio e luta por uma vida melhor, deixa seu suor, seu sangue todos os dias, e ajudaram a construir essa cidade. E isso bate um negócio na gente que é muito forte. Por isso existe amor sim, entre as pessoas. E sempre vai existir, porque eu nunca vou perder a esperança. As pessoas falam que eu sou romântico, que eu sou louco, mas eu nunca vou me desconectar da esperança da nossa São Paulo. Eu não posso, não permito me desacreditar da nossa responsabilidade. Fizemos muita coisa errada, mas temos muito potencial. O que vai ser da cidade de São Paulo? Eu vou falar pro amigo, helicópteros sobrevoam, homens andam, mas ninguém enxerga os outros como seres humanos. Somos tratados apenas como uns ou outros: para cada localidade existe um jogo e uma aspiração. Mas o nosso anseio é de um dia ver tudo isso que é muito ruim longe da gente e de que todas as pessoas recebam o valor que elas devem receber.

* Por Eric Raupp e Júlia Endress

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