David Neiwert: "O autoritarismo nunca acontece sem uma parcela significativa da população por trás"

David Neiwert: "O autoritarismo nunca acontece sem uma parcela significativa da população por trás"

Jornalista analisa a extrema-direita nos meios modernos de comunicação

Eric Raupp

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O número de mortes causadas por ataques terroristas caiu globalmente neste ano, mas aumentaram os atentados perpetrados por adeptos à extrema-direita, conforme dados do Índice Global de Terrorismo de 2019. O jornalista norte-americano David Neiwert pesquisa as diferentes manifestações desta ideologia desde a década de 1980. Autor de livros como "Eliminationists: How Hate Talk Radicalized the American Right" e "Alt-America: The Rise of the Radical Right in the Age of Trump", ele analisa o cenário atual e (res)surgimento de organizações que se direcionam ao fascismo.

Correio do Povo: O senhor pesquisa a extrema-direita e suas diferentes formas de manifestação há muitos anos. O que distingue sua marca contemporânea de seus antecessores?

David Neiwert: A Internet é o principal, porque transformou todo o método e sistema de recrutamento. Antes, essas ideologias se espalhavam por meio de contatos interpessoais, na vida real e, depois, participando de reuniões. Isso mudou completamente. Atualmente, pessoas de diferentes locais são capazes de se conectar e compartilhar não apenas a ideologia, mas também o tipo de planejamento tático. Ela ampliou a capacidade desses ideólogos de recrutar novos seguidores de uma maneira que eles nunca puderam antes. Secundariamente, um dos aspectos da Internet é que ela torna a desumanização e a demonização extremamente fáceis, porque você não está realmente interagindo com outro ser humano, mas com bits na tela. Essa tem sido uma importante fonte para o surgimento da cultura do trolling, que foi essencial para o ativismo online de extrema-direita como o que conhecemos agora. Essa ascensão começou em 2012 e foi realmente construída desse fenômeno, que inclui a capacidade de transportá-lo para o mundo real, com assédio a pessoas e manifestações em massa. Tem sido um processo interessante.

As pessoas que cobri nos anos 1980 e 1990 tendiam a ser mais velhas. Elas olhavam para trás, para o passado. Isso foi essencialmente o que  Ku Klux Klan propôs entre 1915 e 1930. Eles queriam criar, ou meio que trazer de volta, essa “Era de ouro” da vida cívica americana que viam muito na família. Para eles, isso foi quando os brancos governaram o país inteiramente.  A direita radical de hoje é muito mais jovem. O principal grupo demográfico são brancos entre 12 e 30 anos, e é nesses que eles miram o recrutamento: eles gostam de brincar com o senso de alienação das pessoas em relação ao mundo, particularmente entre esses homens brancos que acreditam que estão  perdendo sua posição privilegiada. Então, estamos vendo um tipo de perfil de ativistas diferente do que costumávamos ver, embora ainda tenhamos muitas pessoas velhas nesses movimentos, principalmente quando falamos de milícias patriotas. Elas são mais rurais, enquanto a chamada direita alternativa tende a crescer nos subúrbios.

A minha tese é de que ao mesmo tempo, todas essas facções da extrema-direita – de skinheads e neonazistas a nacionalistas brancos – compartilham uma coisa em comum: esse universo alternativo de teorias da conspiração, notícias falsas e teorias constitucionalistas. Eles basicamente criaram um universo alternativo para si mesmos. E todos eles vivem nisso. Eles compartilham, nem todos concordam com a realidade de diferentes componentes desse mundo, mas geralmente todos habitam nele.

CP: Algumas dessas teorias podem ser lidas e ouvidas em vários meios de comunicação que se tornaram populares. É possível identificar a participação da mídia na disseminação dessas ideologias?

David Neiwert: A mídia de direita, particularmente, participa abertamente da disseminação dessas informações falsas e desinformação. E isso varia, pelo menos no inglês, das notícias Breitbart à Fox News. São organizações midiáticas que realmente se comportam mais como propaganda e são portas para a desinformação ativa e envolvente. E sabemos que essas coisas são realmente coordenadas. A Dra. Kate Starbird, da Universidade de Washington, fez um trabalho maravilhoso mapeando as etapas de como essas campanhas funcionam. E uma das coisas que eles fazem, é claro, é espalhar ativamente a desinformação, o que incentiva o extremismo. Todas essas pessoas acreditam em tantos cenários falsos costas que você nem consegue argumentar com elas, ter uma conversa normal. Esse sistema é, basicamente destinado a ajudar a construir esse universo alternativo que eles têm. 

Há também outro uso de desinformação que afeta as pessoas que realmente se opõem a ela. Isso, em particular, visa aquelas mais vulneráveis, como as comunidades negra e LGBT. A desinformação busca desincentivá-los de participar da resistência e os faz acreditar que as pessoas que estão do seu lado não estão do seu lado ou não estão fazendo as coisas da maneira certa. Esses alvos acabam desanimados e não acreditam em ninguém. É uma espécie de microcosmo e foi o que aconteceu nas eleições de 2016, de várias maneiras. Os eleitores negros e aqueles que normalmente escolheriam Hillary Clinton foram desencorajados a apoiá-la por toda essa desinformação que fez parecer que ela não estava realmente do lado deles. E, então, eles simplesmente não saíram para votar. E isso abriu as portas para os 80 mil votos em três estados que decidiram a eleição.

CP: Existe algum alinhamento entre a supremacia branca e a ideia da imagem americana, ou mesmo o sonho americano?

David Neiwert: Não conheço o sonho americano, mas eles definitivamente acreditam em uma identidade americana puramente racial. Elementos e tendências fascistas sempre fizeram parte do DNA da América. De fato, pode-se dizer que algumas das piores características do fascismo na Europa foram emprestadas de seus exemplos americanos – particularmente as tendências eliminacionistas, manifestadas primeiro na forma de segregação racial e étnica e, finalmente, em violência genocida. Isso não tem nada a ver com democracia ou a Constituição, nada disso. Eles querem um mundo bastante autoritário e sem utilidade para a democracia. Foi basicamente inventado pela Ku Klux Klan. O que eles realmente querem é criar uma pátria totalmente branca e torná-la um local apenas para pessoas brancas.

 

CP: Em 2009, você escreveu justamente sobre  o eliminacionismo. Você imaginaria que dez anos depois o ódio estaria tão presente na sociedade americana?

David Neiwert: Foi um livro foi planejado. Então, eu poderia dizer que sim, eu poderia imaginar. Eu certamente esperava que acordássemos e reconhecêssemos que essas coisas estavam inundando nossa cultura convencional de maneiras que nunca vimos antes e que realmente precisávamos nos levantar e pensar sobre isso. Mas, você sabe, a obra não vendeu muito bem...

 

CP: Em seu trabalho mais recente, "Alt-America: The Rise of the Radical Right in the Age of Trump", o senhor conta a história do ressurgimento de extremistas de direita nos Estados Unidos com a ascensão de Trump? Como resumir essa relação?

David Neiwert: Trump tem uma relação simbiótica com a direita radical, eles basicamente seguem sua liderança e isso faz com que extremistas cresçam em todos os lugares, da pequena violência diária ao atirador de El Paso. Eles ouvem o que o presidente diz e usam como se fosse sua inspiração. Ele, então, responde com desaprovações do tipo "Eu repudio David Duke (político americano nacionalista e supremacista branco, que serviu como Grand Wizard da Ku Klux Klan)”, "Bem, eu condeno supremacistas brancos", que são tão anódinas e insinceras que ninguém acredita neles, particularmente os próprios supremacistas brancos. Na verdade, eles riem abertamente de suas negações e dizem: "Bem, ele está apenas fazendo o que precisa para manter sua viabilidade política". Ninguém acredita, exceto os republicanos partidários que querem fingir que ele não é racista.

O que ele está fazendo é reunir as tendências fascistas latentes na política americana – algumas delas abertamente supremacistas brancas, enquanto a maioria é o racismo estrutural e o privilégio branco que brota das extensas fundações históricas do país. A realidade de que Trump não é um fascista genuíno não o torna menos perigoso. De certa forma, isso o deixa ainda mais, porque se apresenta disfarçado. E, portanto, não precisa endossá-los para capacitá-los. Tudo o que ele precisa fazer é buscar políticas que eles claramente desejam. Não poderia estar mais claro agora no caso de Stephen Miller, seu consultor sênior em imigração e o que realmente está acontecendo com nossa política para a questão, porque ela está precisamente alinhada com o que todos os nacionalistas brancos nos Estados Unidos queriam que o governo fizesse antes de sua eleição.

CP: A ascensão de Trump nos EUA parece ter impulsionado esse movimento em outros países. Ao mesmo tempo em que falamos de retórica política, há outra questão impactante que é o aumento de atentados e ataques. Podemos falar em um sistema internacional da extrema-direita?

David Neiwert: Sim, há um componente internacional sério nisso e, especialmente, nos ataques que vimos recentemente. No caso do assassino de Christchurch, ele era originário da Austrália, só se mudou para a Nova Zelândia porque era seu alvo. Na verdade, está se tornando um problema em qualquer lugar do mundo. Estamos vendo incidentes como o atirador da sinagoga em Holla (Alemanha) ou o garoto que entrou na sinagoga e em Oslo e foi parado por fiéis, mas ele queria fazer outra Christchurch , mas em uma sinagoga. Muito disso está sendo financiado por pessoas de estados oligárquicos autoritários como a Rússia. Particularmente a Rússia está tendo um efeito enorme nisso.

Você também pode ver isso através de, obviamente, Bolsonaro e seus ativistas. Eu diria que Bolsonaro, mais do que qualquer um dos outros líderes que chegaram ao poder, em países da Hungria às Filipinas, é provavelmente o mais próximo a um fascista de verdade. Em parte porque ele é tão descarado sobre o uso de violência populosa contra seus inimigos e o fato de que eles estão dispostos a agredir seus oponentes políticos. É  realmente assustador. Pelo menos os Estados Unidos ainda não chegaram tão longe.

CP: Anteriormente o senhor afirmou que Trump não é um fascista, mas Bolsonaro se aproxima disso. Que diferenças e semelhanças existem entre eles que lhe levam a tais conclusões?

David Neiwert: Há várias coisas em comum que são bastante óbvias. Um é o autoritarismo e o desprezo pelos padrões tradicionais de comportamento, particularmente o comportamento político. Você pode encontrar todos os tipos de semelhanças em suas políticas, particularmente o anti-ambientalismo, que é galopante em ambas as plataforma de governo, mas também a maneira como eles tratam minorias não-brancas. Bolsonaro e Trump são populistas de direita clássicos. Bolsonaro tem um ódio absoluto da esquerda a tal ponto que eles e seus apoiadores são a favor de matar pessoas da esquerda. Trump ainda não chegou lá, mas está bem próximo disso quando fala sobre esse campo que se aproxima vai se concentrar supostamente em parar o socialismo, porque os democratas são apenas socialistas, sabe? Então, temos como esses meninos orgulhosos correndo pelas ruas com camisetas que dizem "Pinochet não fez nada errado". Isso é terrivelmente ruim. Nesse espectro, acho que Bolsonaro está muito mais próximo de ser um fascista real do que Trump, mambos estão nessa direção.

CP:  Há alguma ligação entre extrema-direita e masculinidade?
David Neiwert:
A misoginia cristalina é uma das coisas novas,  embora eu argumente que isso sempre esteve presente na direita radical. Se você observar a maneira como os fascistas trabalharam nos anos 1920 e 1930, foi basicamente sobre o desejo de controlar completamente o corpo das mulheres e forçá-las a fazer o que eles queriam. E isso foi alcançado. Se você seguir a ideologia radical da direita, como George Lincoln Rockwell (fundador do Partido Nazi Americano) promoveu, e que a Nação Ariana espalhou nos anos 1980, 1990, tudo está mergulhado lá embaixo. O tipo de amor e ódio pelas mulheres não é proeminente, mas apenas diz tudo o que você precisa saber que essas são sempre todas as organizações masculinas lideradas por homens, quase nunca lideradas por mulheres. E as mulheres não foram incentivadas a sequer ter qualquer tipo de posição nesses grupos.

O que eles estão fazendo é tocar em vertentes que já estão passando pela nossa cultura atual. Pense em como eles usam a misoginia. Vamos usar o Gamergate como exemplo. Deveria ser sobre ética no jornalismo de jogos, mas o que realmente se tratava eram os homens brancos que estavam acostumados a jogos de tiro em primeira pessoa e tinham medo de arquiteturas alternativas que não eram tão vis por natureza. Algumas designers de jogos feministas criaram jogos alternativos que não dependiam dessa arquitetura e foram realmente violentamente atacadas. O ponto principal de Gamergate era dizer que existe esse quadro de guerreiros da justiça social que queriam reformar a arquitetura de jogos e tirar todas as coisas que os homens gostam de fazer.  Então, parte do que aconteceu foi que esses caras entraram em salas de bate-papo e reclamaram da campanha para “tirar toda a sua diversão masculina”. E, lá, eles encontraram esses nacionalistas brancos que também eram jogadores e diziam que há uma razão pela qual essas feministas querem acabar com seus jogos: seria porque elas fazem parte dessa trama maior chamada marxismo cultural que quer substituir os homens brancos na sociedade com essa maré de imigrantes. Mais tarde, o marxismo cultural se encaixou na grande teoria da substituição, usadas como inspiração por vários terroristas.

CP: Temos subestimado a ressonância dessas ideias?
David Neiwert: Acho que, na verdade, as pessoas não querem acreditar que temos um retorno do fascismo no mundo. Pensávamos que ele estava morto e poderíamos ter nossas vidas normais construídas em torno da democracia liberal. Certamente, nos Estados Unidos, estamos negando isso. Provavelmente, se você vive uma vida confortável branca, pode ser assim. Tentei alertar às pessoas que isso é o que está acontecendo, mas recebi como resposta “você está  sendo alarmista” e “ah, não, você está realmente exagerando”. Estou apenas relatando os fatos, é tudo o que sempre fiz.

Acredito que agora estamos perdendo a guerra contra esse extremismo porque nem sequer reconhecemos que estamos nela. As únicas pessoas que fazem isso são os antifascistas que estão sendo severamente demonizados pelos conservadores, como se fossem uma organização incrivelmente violenta e radical. Eu cresci como republicano em Idaho, mas não sou propenso a radicalismo e realmente não sou inclinado a sair correndo e me juntar a esquerdistas. Mas os antifascistas com os quais tenho lidado são apenas pessoas comuns, não são radicais. Eles apenas reconhecem que há um problema no fascismo e que precisamos enfrentá-lo.

E, neste momento, nossas instituições estão totalmente falhando conosco a esse respeito. Temos organismos que têm sido muito lentos para responder ao terrorismo de direita, e a aplicação da lei no nível local ainda permanece fortemente ligada à ideia de que a maior ameaça é desses “esquerdistas radicais”. Quando temos essas manifestações de rua, os policiais ficam do lado dos proto-fascistas que estão por aí tentando criar a violência em primeiro lugar. É realmente muito surpreendente ver como a polícia trata os antifascistas, porque claramente os vê como o inimigo. Uma das ameaças mais persistentes contra a polícia são justamente os adeptos da extrema-direita, que não acreditam que ela tenha qualquer direito de controle ou de lhe dizer o que fazer. E eles atiraram e mataram vários policiais ao longo dos anos.

CP: Por que é tão difícil reconhecer esse problema?
David Neiwert: Quando falamos em autoritarismo, geralmente o erro é focar nos líderes, nos Bolsonaros, nos Trumps. Mas o autoritarismo nunca acontece sem uma parcela significativa da população por trás dele. Não precisa ser uma maioria, mas você basicamente precisa de cerca de 30% da sua população ou mais que possua essas personalidades autoritárias. E são pessoas que realmente querem regras autoritárias, que, por natureza, as preferem assim. Está embutido em suas personalidades. E, portanto, acho que grande parte dessa negação em curso do que estamos lidando aqui está intimamente relacionada ao fato de que esse é um fenômeno sociopsicológico. O apelo do autoritarismo é que ele promete te deixar mais seguro, dar segurança para sua família, diz que as coisas serão mais estáveis. Mas oculta que você também desiste da sua liberdade e priva a dos outros.

CP: Como você avaliaria a abordagem da oposição para essas questões?
David Neiwert:
Nos Estados Unidos, existem alguns políticos democratas que reconhecem o que estamos lidando e acho que abordam adequadamente. Penso que Elizabeth Warren e Kamala Harris, que recentemente desistiu de concorrer à presidência, estão muito cientes desse problema e o tornaram parte de suas campanhas. Elas foram as únicas que o fizeram, então entendem o que estamos enfrentando. Em última análise, quem vive em uma democracia precisa entender que essa ideologia e esses movimentos são profundamente antidemocráticos e nos destruirão. Eles são um grande desafio à democracia, porque não são facilmente resolvidos, especialmente em um país como os Estados Unidos, onde temos uma primeira emenda, uma total liberdade de expressão.

Os países europeus que não possuem o mesmo tipo de proibição de liberdade de expressão que nós provavelmente são capazes de lidar um pouco melhor com o objetivo de impedir a disseminação dessas coisas. Mas temoS apenas uma mangueira de incêndio e estamos sendo sufocados por essas coisas. E ainda queremos continuar fingindo que não está acontecendo e dizendo a nós mesmos que podemos voltar aos nossos dias de normalidade que tínhamos antes de Trump. Eu gostaria de pensar também, mas não estou muito convencido de que isso vai acontecer.

CP: Você acredita que a América enfrentará um acerto de contas?
David Neiwert: 
Acho que isso acontecerá no final da eleição. Não acho que Trump reconhecerá se ele perder, não acho que ele jamais concederá e não acho que ele abrirá mão do poder por vontade própria. Então, acho que haverá um um acerto de contas.

CP: Para onde vão esses movimento de extrema-direita?
David Neiwert:
Isso depende de nós. O que eles querem, obviamente, é permanecer ascendentes, subir ao topo e governar o mundo. Eu não acho que eles vão descansar até conseguirem isso. Portanto, é realmente dependente do resto de nós reconhecer que isso é uma ameaça real.Precisamos realmente lidar com isso e ver que eles nunca irão embora. Isso é parte do problema: nos iludimos a pensar que o fascismo tinha sido completamente extinto. Mas durante todo esse tempo, a extrema-direita ficou escondida, fervendo sob a superfície.


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