Direito à moradia e a omissão do Estado

Direito à moradia e a omissão do Estado

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Foto: Ricardo Giusti


CP: O que significa?
Betânia de Moraes Alfonsin: Desde 2009, uma lei era de regularização fundiária urbana, que tinha uma concepção plena: as favelas serem transformadas em áreas, como bairros, garantir a segurança da posse para essas famílias, dar titulação e no plano diretor reconhecer que é um território para moradia de população de baixa renda. A urbanização e a participação popular faziam parte. Agora, a única coisa que será feita é a titulação e o objetivo disso é indisfarçável: passar para o sistema legal de propriedade no Brasil milhões de hectares de terra que hoje estão em regime de posse por população de baixa renda. No caso das cidades, nas favelas.
Internacionalmente, a terra está mudando de papel no próprio processo de urbanização capitalista, ela não é mais vista como um meio de produção, ela é vista como reserva de valor. Então, comprar as terras que já estão no sistema de propriedade é muito fácil para o capital, porque ele tem o dinheiro para fazer isso. O difícil é chegar nessa última fronteira, que são as terras que estão no sistema de posse e as terras públicas. No Brasil, isso envolve populações ribeirinhas, quilombolas, indígenas e população favelada. O que vai se promover é um processo de ‘despossessão’. O capital pega, compra e faz disso uma reserva de valor. É preciso agilizar a titulação, ou seja, é lobo em pele de cordeiro. Sob a aparência de que se está fazendo grandes coisas, entregando o título de posse, na verdade há uma facilitação do processo de expulsão.
Quando uma família recebe o título de propriedade, isto vai parar no Cartório do Registro de Imóveis. Hoje, o acesso das famílias à terra é informal. Quando elas têm uma matrícula, fica muito fácil para uma construtora chegar em uma área que tem 50 famílias e oferecer, para cada uma delas, cerca de R$ 30 mil. Em pouco tempo a construtora compra uma área bem localizada, onde antes era uma favela, e não paga praticamente nada. É um urbanismo especulativo. O grande lance para o empresário é o lucro, que é a diferença do que ele pode ganhar em determinado espaço de tempo, com relação ao que ele pagou antes. A população de baixa renda não consegue usar a terra como um ativo financeiro e é o que o mercado imobiliário faz.
Essa nova lei do Temer pavimenta juridicamente o caminho para a financeirização da terra e da moradia no Brasil. É um retrocesso.

CP: Por que nós temos tanta população de rua?
Betânia de Moraes Alfonsin: É uma conjuntura que combina muitos fatores, e de uma perversidade enorme. Temos a Emenda Constitucional 95/2016, que congelou políticas públicas, e não temos mais a solidariedade do Estado. Então essa população, que está desempregada por diversas causas, não tem a solidariedade do Estado e, ao mesmo tempo, há uma reforma na política fundiária brasileira para dificultar o exercício do direito à cidade por essas populações. Isso, na verdade, não precisa ser nenhum expert no assunto para verificar, qualquer pessoa que anda no centro de Porto Alegre vê o significativo aumento da população de rua na cidade, da população que não consegue mais pagar o aluguel, que foi despejada e que empobreceu. A situação da população de rua é ainda mais complexa, pois envolve a questão da assistência social, que o Estado também está tirando recurso. Estas pessoas acabam ficando completamente desatendidas. Sobre a população de rua, pode até ter tido um problema, na origem, com a questão habitacional mas, no momento em que a pessoa está na rua, tem outra política do Estado que está ausente, que é a assistência social.

CP: O que representa a falta de dados sobre ocupações em Porto Alegre? Quem seria o responsável por mapear e acompanhar esta situação? Como tem evoluído a política habitacional em Porto Alegre?
Betânia de Moraes Alfonsin: É uma omissão do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), que já foi muito mais ativo em Porto Alegre nesse sentido. Acaba que a população que vive em ocupações fica resolvendo seus problemas com soluções auto-gestionárias. Estamos na contramão do que as Nações Unidas falam hoje sobre direito à moradia. Uma das questões é a valorização cultural e social do habitat, valorizar os esforços que as próprias populações de baixa renda fizeram para construir suas moradias. O Brasil não urbaniza favelas, não apoia regularização fundiária plena e a atuação em prédios ocupados quem tem feito é a sociedade civil, assessorias técnicas e jurídicas populares e até estudantes. A sociedade civil tem assumido um papel que seria do Estado.
A mesma coisa se observa quanto a uma omissão com relação às propriedades que estão abandonadas, tanto públicas, quanto privadas. O Poder Público deixa esses imóveis vazios e sem qualquer função social, portanto, provoca uma ocupação. E não monitora o atendimento da função social dos empreendimentos privados, o que deveria ser feito para inclusive incidir no próprio mercado imobiliário e na formação dos preços do solo. A terra é cara em boa medida por causa de movimentos especulativos. A grande questão nas cidades é o nó da terra, porque não é um bem como uma cadeira, ou um computador, ou uma janela. É um bem que eu não tenho como mandar fazer mais. Ela não se reproduz. Eu não tenho como, numa linha de produção, mandar fazer mais terra. Então quando alguém retém, de forma especulativa, um bem que não posso mandar fazer mais, o preço aumenta, o que é muito perverso para a população de baixa renda e para a juventude.

CP: Para a juventude?
Betânia de Moraes Alfonsin: O jovem que quer, por exemplo, se emancipar e ter sua própria moradia, não pode porque os preços são proibitivos. Não existem programas adequados para o perfil, realmente é uma situação muito difícil. No Brasil, uma parte muito privilegiada da população tem acesso à terra por causa dos mecanismos bancários que exigem, por exemplo, comprovantes de renda, sendo que boa parte da população não tem contracheque para comprovar que recebe X salário por mês.
Imagina uma população de muito baixa renda, que ganha até R$ 1 mil, que seria a demanda prioritária e está totalmente desatendida. Ninguém está atendendo estas pessoas. Nem o mercado, nem o Estado. Então é óbvio que essa população não evapora, mas acaba sendo empurrada para a ocupação. Ou tem improvisado domicílios em paradas de ônibus, embaixo de viadutos. Esta população é vítima do desatendimento de um direito social fundamental, por isso é um discurso falso culpar essas populações pelas próprias desgraças.

CP: Historicamente, o direito à moradia vem sendo ignorado no âmbito das políticas públicas. Como reverter este cenário?
Betânia de Moraes Alfonsin: Não temos no horizonte uma reversão desse quadro a curto prazo. Entre as alternativas estão a regularização fundiária plena e a produção de moradia com preço compatível com essa faixa de renda. Mas, o Poder Judiciário também é o Estado e, muitas vezes, no julgamento de um caso concreto entre o direito de propriedade e o direito à moradia, entre a função social da propriedade e a propriedade, a cultura jurídica que prevalece é uma cultura protetiva do direito de propriedade, mesmo que não esteja atendendo a função social. A Constituição já mudou, no Brasil, essa visão da propriedade há muito tempo. O Judiciário precisa perceber que o direito à moradia é um direito fundamental, tanto quanto o direito de propriedade e que, na prática, é preciso verificar se não há, de um lado, só um título vazio de alguém que não está atendendo a função social da propriedade e, do outro lado, pessoas que vão acabar ficando na rua. Pelo que tenho visto, acho que a balança não tem sido muito equilibrada e sempre pesa para o lado do direito de propriedade. Mesmo que no conflito concreto devesse prevalecer o direito à moradia, porque não há hierarquia entre direitos fundamentais. No caso da Ocupação Lanceiros Negros, por exemplo, era um prédio público, estava abandonado e foi reintegrado de forma violenta, reintegrado ao abandono, ou seja, prevaleceu a propriedade pública. Sobretudo a forma como aquele despejo aconteceu, é uma forma inadmissível, em termos de direitos humanos. O Estado falhou como um todo. Tanto o poder Executivo, que já tinha se omitido anteriormente em atender a função social e ter alternativa de moradia para essas famílias, quanto no processo, em que o Judiciário fez um papelão, porque demonstrou desconhecer os comentários gerais das Nações Unidas.

CP: Qual a principal solução para prédios ociosos, sejam eles públicos ou privados, principalmente na região central das cidades? Poderiam ser restaurados e utilizados para fins de habitação popular?
Betânia de Moraes Alfonsin: Claro que sim. Na verdade, toda revitalização dos centros urbanos acaba passando pela melhor utilização da infraestrutura que já está instalada. Muito melhor do que construir moradia na periferia é aproveitar o estoque habitacional que nós já temos existente e está abandonado. Teríamos que criar programas, notificação de proprietários privados para parcelamento ou edificação compulsórios. Quanto ao Poder Público, deveria destinar imóveis públicos vazios para moradias de interesse social. Evidentemente, isso seria uma alternativa mas, para isso, é preciso vontade política e perceber que, para além da função econômica, os imóveis públicos têm que atender a função social. É um giro político de entendimento que precisamos dar. Acho que os assentamentos 20 de Novembro e o Utopia e Luta são dois exemplos excelentes de auto-organização popular. Sem lutas dos beneficiários dos direitos, infelizmente, esse direito à moradia e o direito à cidade não vão cair do céu. Nos dois casos, as populações se organizaram e lutaram, pressionando o Estado a tomar essas decisões.

CP: O que é possível aprender a partir das constantes reintegrações de posse e também tragédias como a de São Paulo, em ocupações? O Poder Público deveria focar em mais assentamentos ou mais despejos?
Betânia de Moraes Alfonsin: Acho que a principal lição é que, quando o Poder Público se omite, ele provoca tragédias. O senso comum que entende que as vítimas do incêndio de São Paulo são criminosas porque ocuparam um prédio, é totalmente equivocado. Quem errou, na origem, foi o Estado, que tem uma responsabilidade e que não está cumprindo. O Estado provoca tragédias, é cúmplice da ocupação irregular de prédios públicos e privados, e também áreas de risco, em todo o Brasil.

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