Epidemiologista gaúcho destaca importância da amamentação exclusiva

Epidemiologista gaúcho destaca importância da amamentação exclusiva

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Professor Victora (segundo, da direita para esquerda) na companhia de familiares / Foto: José Francisco Schuster / Especial / CP

O epidemiologista Cesar Victora, professor emérito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) recebeu no último dia 25 o Prêmio Gairdner de Saúde Global, em cerimônia de gala no Museu Real do Ontário, em Toronto, no Canadá, pelo conjunto de seus estudos sobre amamentação. Acompanhando milhares de nascidos em Pelotas ao longo da vida, demonstrou que uma amamentação exclusiva, sem uso de água ou chás e por períodos maiores reduz a mortalidade e leva a melhores níveis de inteligência, escolaridade e renda.


Como começou seu interesse em pesquisar sobre amamentação?


Eu fiz minha faculdade de medicina em Porto Alegre, na Ufrgs. Eu comecei a fazer residência em medicina comunitária, trabalhando em uma favela de Porto Alegre, a São José do Murialdo. Nesta época, em 1977, estava sendo federalizada uma faculdade particular de Pelotas, que era a Faculdade Leiga de Medicina, que se transformou em Universidade Federal de Pelotas, e eles precisavam de professores para medicina preventiva e saúde comunitária. Me convidaram para ir para lá e eu comecei a trabalhar também principalmente favelas, em postos de saúde. Eu gostava de atender crianças e me dei conta de que as crianças que eu via voltavam muitas vezes com a mesma doença, e doenças infecciosas, como diarreia, pneumonia, sarampo. Comecei então a pensar em fazer medicina preventiva, porque eu tratava uma criança, daqui a pouco ela voltava, às vezes morria. Pensava em quais as maneiras que mesmo a população pobre teria acesso para prevenir as doenças infecciosas. E me chamou atenção a ideia da amamentação, da qual já se tinha ideia de que era importante, que protegia, mas sobe a qual não havia estudos modernos em nenhum lugar do mundo. Os que havia eram muito antigos e era uma metodologia muito ruim, e aí resolvi fazer esse estudo.


E a ideia de fazer um acompanhamento de longo prazo, uma ideia ousada?


Essa ideia foi conjunta entre o professor Fernando Barros, da Universidade Católica de Pelotas, e eu, que éramos muito amigos e gostávamos de pesquisa. Ele começou a coorte de 1982 porque o primeiro objetivo nem era fazer um acompanhamento, era simplesmente ver todos os nascimentos da cidade e tentar ver qual era a mortalidade infantil, quantas crianças nasceram com peso muito baixo, e assim por diante. Era um estudo somente de um acompanhamento das crianças na hora em que nasciam. Com o tempo, nosso pensamento evoluiu e decidimos avaliar o crescimento dessas crianças.


O que é coorte?


O termo original é um batalhão do exército romano. Em epidemiologia, esse nome foi adotado quando se estuda todas as pessoas que nasceram na mesma cidade em um mesmo ano, e que são acompanhadas pela vida. É um dos estudos mais difíceis de fazer, porque requer muitos recursos, um acompanhamento por muitos anos deste grupo de pessoas.


Vocês conseguiram fazer com 6 mil pessoas?


A coorte de 1982 começou com 6 mil pessoas. Já morreram umas 400 - bastante, a mortalidade infantil é alta - e das restantes estamos acompanhando cerca de 4 mil. Depois, a cada 11 anos iniciamos uma nova coorte em Pelotas. A segunda foi em 1993, 4 a 5 mil crianças, a terceira em 2004 e a última em 2015. Estamos, portanto, com quatro estudos paralelos, totalizando mais de 20 mil pessoas.


Como funciona o estudo?


No começo da vida as coisas são muito rápidas, a criança está crescendo muito, adoece muito, então fazemos entrevistas anuais. Mais tarde, vão se espaçando. Esta coorte de 1982, que completou 30 anos de idade em 2012, estamos pensando em ver somente com 40 anos de idade de novo, até porque quando visitamos muito seguido as pessoas cansam e não querem mais. E não é só entrevista, é uma série de exames: coleta de sangue, exame de ultrassom, de composição corporal, capacidade respiratória, pressão arterial. É um acompanhamento complexo que chega a durar quatro horas. Agora eles vêm na nossa clínica, nós temos um prédio só para isso. Foi construído pelo Ministério da Educação na Universidade Federal de Pelotas, é o Centro de Pesquisas Epidemiológicas.


Quando o acompanhamento pára de ser anual?


Aos quatro anos. Depois é aos sete, aos 11, 15, 18, 23, 30 e 40. Como nós acompanhamos a pessoa pela vida inteira, eu sei qual é o efeito de ter um peso baixo ao nascer sobre o risco de ter diabetes aos 30 anos. Como cada coorte tem uma vista aos dois anos e aos quatro anos, podemos comparar o que está acontecendo com a cidade de Pelotas nesse período. Uma das coisas que está me chamando a atenção é a obesidade infantil, já há uma incidência grande a partir de um ano de idade.


Qual a causa da obesidade infantil?


Alimentos processados, refrigerantes que dão para as crianças, os chips, todos esses alimentos que são muito ricos em calorias que antigamente não se comia. É um potinho de iogurte com um monte de açúcar, criança adora chips, bolachinha, essas coisas que não alimentam muito e tem muito açúcar e muito sódio. Esses chips têm muito sal, isso leva eventualmente à hipertensão arterial.


Quem e quantos são os entrevistadores?


Quando estamos fazendo um estudo, são no mínimo 50. Não são estudantes, porque eles não têm tempo. Tentamos muito trabalhar com estudantes, mas desistimos. Pegamos principalmente recém-formados em nutrição, enfermagem, psicologia, fisioterapia, em áreas relacionadas à saúde, e contratamos em tempo integral. Há uma outra equipe que analisa e tabula os dados nos diversos acompanhamentos. A coorte de 1982, por exemplo, que já tem uns dez acompanhamentos, tem milhares de variáveis, então podemos fazer qualquer estudo, relacionar qualquer fator, procurando uma determinada idade com um outro fator que acontece na idade adulta.


E chegaram a conclusões muito interessantes.


Nós comparamos a duração da amamentação com o que chamamos de capital humano, que é a inteligência, a produtividade, a renda, a escolaridade. Nós achamos uma associação muito forte, a criança que recebeu o leite materno durante um ano em média ela tem quatro pontos de QI mais alto do que uma criança que amamentou menos de um mês, e em média ela ganha R$ 400 a mais. É algo muito palpável. Como temos métodos estatísticos muito sofisticados, nós podemos controlar outros fatores que podem influenciar. Eu posso fingir que todas as crianças são iguais em termos de renda e escolaridade dos pais e uma série de outros fatores e vejo o efeito puro da amamentação sobre a inteligência e a renda.


Atualmente qual é o tempo médio de amamentação de uma criança no estudo?


É ao redor de um ano e dois meses. Está muito bom, melhorou muito.


Há uma diferença em relação à média nacional?


O último estudo nacional foi feito em 2007. Nesse momento, estamos planejando um novo estudo nacional, e meu grupo vai ser encarregado da análise dos dados. Mas sabemos que na região Norte se amamenta mais, talvez por influência da população indígena. A índia amamenta muito, três a quatro anos.


E em nível internacional?


Em nível internacional estamos relativamente bem. O Brasil é um exemplo porque quando começamos a coorte em 1982, a duração da amamentação foi de três meses, e agora está em mais de um ano.


O que fez aumentar o tempo de amamentação?


Começa pela informação, com o papel da mídia de divulgar os benefícios da amamentação, que diminui a mortalidade infantil, diminui o câncer de mama na mãe, ou seja, é bom para a mãe também, aumenta a inteligência da criança. O que aconteceu no Brasil foi um movimento muito grande incluindo pediatras, o Ministério da Saúde, Pastoral da Criança, e com muito apoio da mídia. Começaram estão estas campanhas e aí começou a Gisele Bundchen e as grandes artistas das novelas a amamentarem. Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde começou a treinar os médicos, os pediatras, as enfermeiras, as nutricionistas, para que apoiassem diretamente a amamentação. Porque não é só dizer “amamenta que é bom”, é dizer “bota o bebê no colo assim, segura assim, bota o seio assim...”


Faz diferença?


Faz muita diferença. Tem muita mãe que diz que não consegue amamentar, que tem pouco leite, mas é porque o bebê não está pegando direito no seio. Chamamos isso de “a pega”. A pega é maneira com que a boca do bebê pega o mamilo da mãe. Se a pega for ruim, ele não consegue tirar leite. Se ele não consegue tirar leite da mãe, a mãe não produz mais, pois a produção dela depende da estimulação. Quando o mamilo é estimulado pela boca do bebê, acontece um reflexo neuro-hormonal para produzir mais leite. O Brasil tem outra coisa muito interessante, que é a maior rede mundial de bancos de leite humano. São mais de 200 bancos onde as mães que tem leite em excesso e não precisam, doam esse leite que é refrigerado, armazenado e testado, pois algumas doenças infelizmente passam pelo leite materno, como o HIV. É uma rede fantástica.


O que dificulta uma maior adesão à amamentação? A propaganda do leite em pó?


Sem dúvida. O Brasil também foi pioneiro nisso [o combate à propaganda. A Organização Mundial da Saúde tem um código de propaganda de leite em pó, que basicamente diz que é proibido fazer propaganda. E é proibido ir a hospitais dar amostra grátis de leite em pó, o que muitas companhias faziam. Nos Estados Unidos tem propaganda de leite em pó, pois eles não adotaram o código. Tem distribuição de leite em pó grátis no hospital. É quase como um traficante que fica na porta da escola dando um cigarrinho de maconha ou crack para a garotada viciar, mas o Brasil foi muito forte contra isso. E a sociedade civil no Brasil também é muito forte. Nós temos várias ONGs só sobre amamentação. Se uma companhia começa a fazer propaganda de leite em pó, essas ONGs denunciam. A população faz um controle social dessa prática.


Outro inimigo seria uma impressão de que o seio cairia com a amamentação?


Não há evidência sobre isso, é uma lenda urbana. E, claro, a mulher tem que entender que o seio está lá primariamente para amamentar. E temos conseguido no Brasil, com essas mulheres bonitas, modelos, artistas, amamentando. Nisso, o Brasil progrediu muito.


Como é o apoio à pesquisa no Brasil?


Quando começamos, tinha muito pouco dinheiro brasileiro. Aliás, a primeira verba que recebemos foi do Canadá, do International Development and Research Center. O governo do Canadá dá verba para pesquisa em países como o Brasil, de renda média ou baixa. Depois disso, conseguimos muito financiamento da Organização Mundial da Saúde, da Unicef e outros, principalmente estrangeiros. Lá pelo ano 2000, principalmente no governo Lula, aumentou muito o financiamento para a pesquisa no Brasil e construíram nosso centro de pesquisas. É um prédio construído pelo Ministério da Educação só para pesquisa. No momento atual está uma crise enorme porque o setor brasileiro cresceu muito, se formaram muitos pesquisadores, muitos PHDs, e atualmente há poucas bolsas de estudos, pouca verba. Hoje se vai a Toronto, ao Canadá, e as universidades estão cheias de brasileiros. Por um lado, é bom, porque a ciência é internacional, mas por outro lado, é uma fuga de cérebros. São os melhores cérebros. Meu filho é pesquisador na Universidade Rockfeller, em Nova York, porque ele atua em uma área de pesquisa muito complexa, que requer laboratórios com equipamentos caríssimos. No Brasil, ele não conseguiria fazer [sua pequisa. Estamos perdendo cabeças e o governo brasileiro investiu muito na formação desses pesquisadores. A universidade é gratuita, não é em qualquer lugar do mundo onde a universidade é pública. E o Brasil inclusive manda gente para o exterior. Na Universidade de Toronto estou vendo uma série de jovens pesquisadores que o Brasil mandou para cá para passarem seis meses aprendendo a fazer pesquisa, o Brasil pagou a bolsa, pagou a passagem, e eles não voltam para o Brasil porque as condições lá não estão muito boas. Quando o cara é bom, a universidade aqui atrai.


É fundamental, então, investir em pesquisa.


Pesquisa é um investimento a longo prazo. A Coreia do Sul na década de 50 estava arrasada. Terminada uma guerra, estava muito pior do que o Brasil. Se reorganizou e começou a investir em pesquisa, ciência e tecnologia. Hoje em dia, produzem Samsung, IPhone, Hyundai, eles têm uma capacidade tecnológica fantástica. Levou 30, 40, 50 anos, mas isto saiu daquele investimento que eles fizeram em ciência. Prêmio Nobel, o Brasil não tem nenhum. A Inglaterra, o Japão, os Estados Unidos são os que mais têm. O Japão investe muito em pesquisa também. A gente fica atrás.


Mas a sua pesquisa conseguiu tornar-se até recomendação da Unicef. Como foi chegar a isso?


Isso me faz muito feliz. Quando se faz pesquisa, não se sabe se vai mostrar um efeito ou não e se vai ser adotada e virar política de saúde. Essa tradução da pesquisa para política é uma coisa incerta. Nós tivemos a felicidade de fazer esta pesquisa lá nos anos 80 sobre o aleitamento exclusivo e ela foi repetida em outros países. E acharam a mesma coisa. Em 1991 a Unicef e a Organização Mundial da Saúde definiram que tem que amamentar a criança exclusivamente, sem dar nenhum líquido, chá, suquinho, água. Então, virou uma política.


Qual deve ser o tempo mínimo de amamentação?


A Unicef e a OMS recomendam seis meses só leite materno e continuar amamentando até os dois anos. É importante para a mãe, é importante para a criança. Nós sabemos que no mundo moderno às vezes não se consegue isso, mas não deixamos de recomendar como sendo o ideal, e muitas mães conseguem. Mas a responsabilidade não é só da mãe. O país tem que ter licença-maternidade, o empregador tem que ter um lugar dentro do trabalho em que ele permita que a mulher que amamenta tire o leite e armazene. Muitas mães estão fazendo isso hoje. Mas o empregador tem que ter uma salinha, um quartinho com uma geladeira onde a mulher possa sentar, colocar uma bomba para tirar o leite e no dia seguinte o leite é dado para a criança, seja na creche ou na escola. Ou então, o empregador ter uma creche, as grandes companhias terem um local onde a mulher possa parar, dar de mamar e voltar para o trabalho.


Ainda há escândalos pela amamentação em público. Isso tem que parar, não?


É um absurdo. Nos Estados Unidos me chama muito a atenção. Eu estava em Baltimore com amigos com um bebê. A mãe colocou algo que parecia uma burca para poder dar de mamar sem se incomodar. O Brasil está muito bem, isso é proibido. Em São Paulo, se um porteiro, um garçom, um policial que disser à uma mãe que não pode amamentar, ele que é preso. É proibido interferir na amamentação em qualquer lugar. Na Inglaterra, houve um boicote a uma rede de restaurantes porque um garçom disse à uma mãe que não podia amamentar.


Como está atualmente o seu trabalho?


Eu já sou um professor sênior, então eu treinei pessoas e quem toca agora as coortes no dia-a-dia são na grande maioria meus alunos de doutorado, que foram contratados depois pela Universidade. Eu estou trabalhando atualmente muito em nível internacional, minha área agora virou saúde global. Os grandes problemas do mundo estão na África e no sul da Ásia: Índia, Paquistão, Bangladesh, Afeganistão e praticamente toda a África abaixo do Saara. Eu viajo muito, eu recebo muitos dados desses países para analisar no meu grupo. A Organização Mundial da Saúde nos designou como centro colaborador para análise de desigualdades de saúde materno-infantil. Desigualdades entre países e dentro dos países. Pegamos dados de vários países e analisamos quais são os grupos que não estão recebendo o que precisam: que não estão sendo vacinados, que não estão recebendo um aconselhamento sobre como amamentar, que não conseguem chegar a ter um parto no hospital e têm o filho em casa. Esse trabalho é muito gratificante, porque é muito direto também. São 81 países que estão nesta rede e ficamos permanentemente analisando os dados deles.


Tem algo simples e barato que se possa fazer por esses países a curto prazo?


O que nós queremos mostrar é que não precisa ter uma UTI pediátrica para reduzir a mortalidade infantil. Há muitas maneiras muitos simples. A amamentação é uma delas. E essas mães da África amamentam, mas elas começam logo a dar para a crianças uns mingaus bem diluídos, uns suquinhos. Elas pegam um pouquinho de farinha de mandioca, de sorgo, de milho ou qualquer outro cereal que tenha naquela região, diluem bem na água e dão aquela coisa bem fraquinha, contaminada. Então, o nosso trabalho é dizer para darem só o leite materno. A solução está ali. Outra coisa que funciona muito bem é que há vários programas de treinamento de agentes comunitários para dar para as crianças os antibióticos mais básicos, como no tratamento da diarreia. Essas pessoas – eu trabalhei bastante com isso no Malawi – tem uma maletinha com remédio para diarreia, pneumonia e malária, que são as doenças que mais matam crianças. E eles estão na comunidade. A criança está com diarreia, eles já dão um pacotinho com soro reidratante. Então, é não precisar que a criança vá num hospital, em um médico, ou em outro lugar complexo, pois às vezes a família não tem o dinheiro nem para o transporte. Vacinas, também. Tem muitas vacinas que não são de alto custo e tem agências internacionais que financiam. Se conseguirmos fazer que consigam chegar as vacinas básicas para todas as crianças, é um grande sucesso.


E como se sente recebendo este prêmio no Canadá?


Muito feliz. Esse prêmio que recebi de saúde global acho que é o maior do mundo. Os caras que receberam antes de mim foram quem descobriu a epidemia de AIDS, o ebola, a vacina do câncer de colo uterino (papiloma, HPV), são pessoas que têm um nível altíssimo. Até não esperava, eu sabia que tinha sido indicado, mas achava que não conseguiria ganhar. É muita gente que tem muito mais laboratório, muito mais condições. E aí fiquei muito feliz ao ganhar.


Por José Francisco Schuster, de Toronto, Canadá / Especial / CP


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