Fabiano Bossle: "ler Paulo Freire me permitiu buscar uma Educação Física transformadora"

Fabiano Bossle: "ler Paulo Freire me permitiu buscar uma Educação Física transformadora"

Giullia Piaia

Fabiano Bossle, professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Ufrgs

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Fabiano Bossle, professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Ufrgs, se dedica desde o seu mestrado, no final dos anos 1990, à pesquisa dos ensinamentos de Paulo Freire. Em sua nova pesquisa, o professor busca compreender a fundamentação teórica e as possibilidades metodológicas e pedagógicas da Educação Libertadora para a Educação Física Escolar. Nesta entrevista para o Correio do Povo, Bossle fala sobre as particularidades da educação pautada em Paulo Freire e sobre sua aplicação na Educação Física Escolar.

Qual o objetivo da pesquisa?

A pesquisa que estou realizando objetiva compreender a fundamentação teórica e também as possibilidades metodológicas e pedagógicas da Educação Libertadora de Paulo Freire para uma Educação Física Escolar brasileira. Nosso grupo de pesquisa também tem realizado investigações sobre educação física escolar a partir do Paulo Freire: sobre negritude, descolonização do currículo e do conhecimento do componente curricular, multicultura corporal de movimento, socioeducação, educação indígena, saúde, mediação nas aulas e no conhecimento da Educação Física no contexto de institutos federais. Por fim, todas as análises convergem para um compromisso de aprofundar a compreensão das possibilidades de uma Educação Física Escolar crítica e libertadora inspirada em Paulo Freire.

De onde veio sua relação com a Educação Física Escolar e com os ensinamentos de Paulo Freire?

Em 1987, logo que fui aprovado no vestibular para cursar licenciatura em Educação Física, uma tia que era professora me provocou e me desafiou a compreender Paulo Freire. Isso foi muito importante para a minha formação inicial. Formação inicial essa que era pautada em uma racionalidade técnico-instrumental. Ler Paulo Freire e procurar ressignificar seu pensamento e suas ideias no meu próprio percurso formativo foi muito importante. Acredito que ler Paulo Freire mobilizou uma potencialidade cognitiva crítica de reconhecer experiências e assumir posicionamentos para uma Educação Física Escolar outra, diferente porque transformadora. As minhas experiências na condição de professor em escolas da rede estadual, da rede municipal e também da rede privada, tanto na educação básica como no ensino superior, não são maravilhosas, nem exemplares. São experiências de quem se reconhece em um permanente processo de aprender com os outros, fazendo autocríticas e reflexões, mas, principalmente, tendo claro um compromisso com a educação do povo. No qual eu me incluo, na condição de um oprimido.

Como a pesquisa é feita?

Essa pesquisa é de natureza teórica. Então, ela segue revisando diferentes produções de Paulo Freire, produções em livro, artigos, palestras, entrevistas. E também, revisando as produções científicas do campo da Educação Física Escolar, teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos de periódicos, livros. A intenção é analisar os marcos legais da educação e da educação física escolar no Brasil. Com esse movimento de pesquisa teórica, tenho a finalidade de construir e posicionar o conhecimento de uma teoria pedagogia da Educação Física Escolar, que eu estou chamando de crítico-libertadora. A previsão de execução dessa pesquisa é de 2021 a 2023 e ela se articula as demais atividades que eu tenho realizado como docente da Ufrgs, sejam as de professor de graduação do curso de licenciatura em educação física, de professor da pós-graduação em Ciências do Movimento Humano ou como orientador de mestrado e doutorado e na coordenação do grupo de pesquisa. Ao final, a intenção é que a socialização desse conhecimento, dessa pesquisa que estou realizando, ocorra na forma de um livro e também em diálogos com os professores de Educação Física nas escolas.

Atualmente, qual a metodologia geralmente adotada no ensino de Educação Física Escolar?

Há uma diversidade de possibilidades teóricas e de concepções que têm pautado e orientado o ensino do conhecimento do componente curricular Educação Física nas escolas. Aqui cabe também uma observação, nós estamos falando do componente curricular Educação Física, que faz parte do processo de ensino e aprendizagem dos conhecimentos de um currículo, de um processo que acontece na escola, que nós chamamos de escolarização. A escola é uma instituição com função social definida pelo projeto de sociedade que a gente quer construir e para isso o conhecimento e a didática precisam estar alinhados com esse projeto de transformação da sociedade.

Nós estamos falando aqui da apropriação do conhecimento pelos estudantes das suas realidades, das suas capacidades de interpretar essas relações e os significados dos seus corpos nas situações de movimento que são próprias de suas culturas e também na mobilização das múltiplas possibilidades de ser corpo. Não pelo reducionismo de ter um corpo e simplesmente produzir gestos técnicos ou de treinar. Veja bem, a minha crítica é dirigida para uma didática orientada pelo que Paulo Freire denominou de educação bancária. Que concebe o estudante como um ser passivo, um depósito e de saberes e conhecimento que chegam prontos e pouco ou nada fazem sentido para o estudante. O corpo da criança, do jovem, do adulto e do idoso que vai para a escola, não é um corpo passivo, sem experiências, e que deve ser preenchido com ensinamentos que não permitam que ocorra a produção do reconhecimento de suas existências.


Que atividade poderia ser feita em uma aula de educação física com essa perspectiva?

As experiências de Paulo Freire nos deixam o valor de uma experiência particular. A partir do compromisso com uma educação essencialmente humanizadora. O Paulo Freire é, e eu digo é pois seus pensamentos seguem muito vivos e relevantes, um grande humanista. A humanidade dele foi muito bem traduzida em sua obra "Pedagogia do Oprimido", em que ele se posicionou para que essa pedagogia seja pautada pelo diálogo e que seja a pedagogia dele, do oprimido, e não para ele. Ao dizer isso, é preciso entender como parte de um processo de colonização de 521 anos, no qual a educação não é pensada para a educação de sujeitos solidários, críticos e dotados de uma consciência coletiva, mas pelo contrário, de uma educação para o povo brasileiro que torna ele mero objeto, perdido entre estatísticas de fracasso. Então, as aulas poderiam ser entendidas na condição de encontros de diálogo e de profundo respeito aos saberes compartilhados. Problematizar a realidade, o corpo, as suas relações, com e nas culturas diversas e não as versões de histórias únicas dos vencedores e de sua força narrativa de opressão, mas de outras histórias e de narrativas que se inscrevem no cotidiano de experiências existenciais dos corpos da criança, do jovem, do adulto e do idoso em situação de escolarização. A didática que orienta as aulas de Educação Física escolar inspirada em Paulo Freire é fundamentalmente problematizadora e humanizadora. Ela faz com que cada sujeito se compreenda em sua cultura e que seu corpo se torne um corpo consciente.

Como os professores de Educação Física podem começar a aplicar a metodologia da Educação Libertadora?

Eu começaria lendo "A Pedagogia do Oprimido" que é uma obra seminal do Paulo Freire e é extremamente importante. Nós estamos vivendo um momento da história do Brasil de disseminação de uma cultura de ódio com os professores e professoras, onde tentam culpar os docentes pelo fim e pelo fracasso e assim justificar a extinção da educação pública do povo brasileiro. A cada dia que passa, acompanhamos as notícias, que os novos gestores e secretários em educação, que não conhecem escolas, nem currículo, nem educação popular, nem docência e, menos ainda, os estudantes dos extratos populares que seguem empreendendo esforços para implantar os modelos e os projetos de educação sem ouvir os professores. E menos ainda aos estudantes e comunidades escolares. Paulo Freire foi secretário de educação na cidade de SP e fez uma gestão de respeitoso diálogo com os professores, estudantes e comunidades, ele não impôs um currículo, nem um projeto. Ele construiu um diálogo e propôs humanidade.

Uma Educação Física inspirada em Paulo Freire é humana e tem no diálogo um princípio fundante. Um corpo consciente não vai emergir de uma educação física pautada pela arbitrariedade na imposição de um conhecimento para o estudante. Mas em uma racionalidade problematizadora das próprias manifestações do corpo nas suas realidades e no desafio para assumir uma consciência sócio-política de seus corpos no tempo presente. Para que talvez possam reconhecer as suas experiências e culturas como parte dos conhecimentos, como parte do currículo e também como parte da instituição social indispensável que é a escola. A Educação Física inspirada em Paulo Freire reconhece os conhecimentos dos esportes, da saúde, dos jogos, das lutas, das atividades expressivas rítmicas, obviamente. São manifestações presentes na sociedade brasileira, mas também o são outras manifestações e de outras culturas que nem sempre tiveram espaço nos currículos escolares. Como aquelas da cultura afro-brasileira, indígena e de outros grupos. Essas manifestações precisam ser compreendidas em uma perspectiva didática, de uma pedagogia que é dele, do oprimido, e não imposta a ele. Para que o professor possa entender isso é preciso que ele tenha interesse em se apropriar dessa didática.


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