Liliana Cardoso: "Ainda é ínfimo o protagonismo feminino no Movimento Tradicionalista Gaúcho"

Liliana Cardoso: "Ainda é ínfimo o protagonismo feminino no Movimento Tradicionalista Gaúcho"

Sidney de Jesus

publicidade

Declamadora, radialista, apresentadora, mestre de cerimônias e ativista cultural, Liliana Cardoso, de 43 anos, é vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura do RS e Patrona dos Festejos Farroupilhas do Rio Grande do Sul 2021. Com 37 anos dedicados ao tradicionalismo, ela fala ao Correio do Povo sobre a sua história e trajetória na arte e na cultura gaúchas.

O que representa e qual a importância de ser escolhida patrona dos Festejos Farroupilhas 2021?

Representatividade, força, igualdade, liberdade e humanidade. Representa dignidade em reconhecerem uma trajetória pautada por muita luta, resistência e resiliência, galgando degrau por degrau pelas mãos dos meus pais, que possibilitaram a base fundamental de seguir firme nos ideais de minha ancestralidade e da minha gente negra. E ter a certeza de que não passarei por essa vida terrena fazendo “peso” e sim deixando para meus filhos Andres e Pérola, ao meu neto Andres Nicolás, que a mãe e avó fez, mesmo que seja pequeno, algo que transformou a vida de muitos na simplicidade de falar e contar somente a verdade desta linda caminhada no tradicionalismo gaúcho. Sou um mosaico da diversidade e a reafirmação dessas culturas populares que mesclam e compõem a identidade cultural deste Estado. Vou de Anita aos Lanceiros Negros e nesta raiz que me forjou sou a patrona que entrelaça todas as culturas, mulheres e homens acolherados no mesmo laço de igualdade, liberdade e humanidade!

O significa ser a primeira mulher negra a receber esta homenagem? Como a senhora vê a participação do negro na cultura e história do Rio Grande do Sul?

Ser a primeira mulher negra a receber esta homenagem é a certeza do pertencimento e protagonismo de uma guriazita negra que pautou a sua vida vinda de uma periferia e galgou os grandes palcos do Brasil. É ter como inspiração e reafirmação os grandes heróis na Revolução Farroupilha, brutalmente traídos e assassinados, os lanceiros negros, que foram linha de frente. A Liliana é um pouco de cada um desses lanceiros, uma lanceira negra contemporânea que os homenageia e os coloca, através dessa homenagem, no lugar onde eles sempre teriam que estar no protagonismo da história.

Sua participação no universo tradicionalista vem de décadas. Como foi o início desta trajetória? Teve influência familiar?

Com 37 anos de estrada no tradicionalismo, início de quem vem de periferia, de uma família numerosa de filhos, não foi tão fácil, mas, ao mesmo tempo, nunca recuei. Minha mãe, já falecida, vítima da Covid-19, me dizia: “Teu farol é pra frente, segue, pra frente sempre, pra frente”. Meu pai, responsável por me dar acesso à cultura, que me instigava a ler, pesquisar e estudar, sempre afirmou que só tem êxito quem tem foco e determinação. Não teve um momento em que pensei em desistir, porque era chancela pra mim saber que meus pais jamais desistiriam de mim e isso foi o que norteou minha força, garra e coragem. Tanto é que esta trajetória rendeu livros do meu pai, como “A arte de declamar no gauchismo”, contando toda a nossa luta de vida na cultura gaúcha.

Como e quando despertou a vontade e a habilidade de declamar e fazer poesias? Qual foi sua referência e inspiração? A senhora esperava ser premiada em encontros de artes e rodeios do tradicionalismo gaúcho?

Esse despertar começou nos meados de 1985, ao fundar o CTG Coxilha Aberta. A arte de declamar adentrou em minha vida pelas mãos de uma professora, Iara Costa, filha do poeta Dimas Costa. Nos intervalos do recreio, eu ficava ensaiando e aprendendo esta arte tão ímpar. Tive e tenho como referência meus pais, José Luiz Rodrigues dos Santos e Dione Cardoso Rodrigues dos Santos, que nunca desistiram de mim, que me possibilitaram transitar em muitas “salas” de cultura poética pelo RS. Com certeza eles foram a base e a inspiração, viveram meus sonhos, trilharam meus caminhos e me prepararam para ser cultura, verso e legado. Sabia que teria êxito em premiações, por toda a dedicação, foco e determinação desta arte de declamar que nasceu engendrada em minhas veias.

A facilidade de comunicação a colocou como apresentadora de TV, rádio, festivais e outros eventos. Sua atuação como comunicadora passa pelo sucesso nas atividades culturais?

A comunicação nasce no seio familiar e dentro de um galpão de CTG. Foi no tradicionalismo que me forjei como apresentadora, começando por saraus, bailes e, na sequência, tomando conta dos palcos de festivais e eventos públicos e privados. Tudo galgado dentro da cultura e tendo como palco o tradicionalismo.

Qual contribuição a senhora acredita que ainda pode dar para divulgar cada vez mais o tradicionalismo?

Através de ações efetivas projetos educacionais, no viés cultural. Pontuando e mapeando a diversidade cultural em meu lugar de fala para todos que queiram escutar e reconhecer um legado de luta e história. Porque foi no Movimento Tradicionalista Gaúcho que encontrei algo transformador para ser voz na pluralidade e ter o entendimento que este movimento popular tem que atender aos mais longínquos pagos, firmando o acesso aos que não têm acesso e oportunizando aos jovens se sentirem abraçados e acolhidos pelo maior movimento organizado do mundo.

A cultura ainda tem barreiras a derrubar para o gênero feminino ter o mesmo destaque do masculino?

Com certeza, muitas barreiras a ser rompidas. Ainda é ínfimo o protagonismo feminino na cultura e no próprio Movimento Tradicionalista Gaúcho, mesmo tendo avanços em ocupações de destaque em diversos setores na comunidade cultural.

Como foi receber o prêmio Vitor Mateus Teixeira e a Medalha Mérito Farroupilha, a maior honraria do RS?

Emoção de reconhecimento e pertencimento, de reparação de devolver a uma mulher negra o reconhecimento de toda uma trajetória em prol da cultura e educação. Reconhece e chancela os caminhos de vida e legado à cultura do RS.

Como é ser referência na arte gaúcha?

Uma responsabilidade para com as próximas gerações, que possam se inspirar e ter a certeza de que ainda é possível sonhar e acordar em uma realidade mais justa e igualitária, com uma referência de guria genuinamente criada em periferia e dentro de CTGs. Que os caminhos de Liliana Cardoso sejam referências de luta, resistência.

Como está o livro que a senhora pretende lançar no dia 20 de setembro?

Este livro é um filho que nasce para o mundo, algo que vai muito além das páginas escritas da história que embranqueceram a cultura negra no gauchismo. Este livro traz reparação, retratação, reconhecimento, lugar de fala e a matriz, que é negra, na identidade cultural do gaúcho. Com este filho, depois de todas as inquietações ao longo da minha estrada, terei um pouco de paz e lágrimas de gratidão à minha ancestralidade, que clama por justiça e reconhecimento. É uma obra coletiva, publicada pela Pragmatha Editora.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895