Luiza Correa de Magalhães Dutra: "Dos dois lados, morrem mais negros"

Luiza Correa de Magalhães Dutra: "Dos dois lados, morrem mais negros"

Carlos Corrêa

Luiza Correa de Magalhães Dutra, cientista política e pesquisadora

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O tema é, infelizmente, mais recorrente do que se gostaria. Mas a morte de negros em ações policiais não dá sinais de diminuir. Especialista no assunto, a cientista política e pesquisadora Luiza Correa de Magalhães Dutra realizou uma pesquisa e esteve envolvida em outra na qual é analisada a relação entre as ações policiais e os atributos raciais utilizados pelas forças de segurança para definir o que é ou não suspeito e as consequências disso.

Como foi feita a pesquisa?

São duas grandes pesquisas sobre essa temática, feitas na mesma época. Uma foi a minha dissertação, aqui no Rio Grande do Sul, “O Céu da Boca do Inferno Esperando Você - A Violência Policial e o Marcador Social Raça”, que estava dentro de uma pesquisa maior que envolvia Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais e Distrito Federal, e uma pesquisa que se chama “Policiamento Ostensivo e Relações Raciais - Estudo Comparado sobre as Formas Contemporâneas de Controle do Crime”, que aí envolvia a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), UnB (Universidade de Brasília), FJP (Fundação João Pinheiro-MG) e a PUCRS para que fosse possível comparar quatro unidades da federação. Essas pesquisas tentam fazer um levantamento sobre essas formas contemporâneas de controle do crime, especificamente sobre o policiamento ostensivo, que é feito pela polícia militar. E as relações com as ideias da seletividade da ação policial e os atributos raciais desses suspeitos de crime. Foram duas frentes maiores, a busca por dados quantitativos, que seriam prisão em flagrante e mortes em decorrência da ação policial, e a parte qualitativa, que eram entrevista com os policiais. Depois se cruzou os dados para ver se eram parecidos ou não.

E quais foram os resultados?

De forma resumida, o que saiu dos dados foi que, por exemplo, em São Paulo, entre 2008 e 2018, na taxa de letalidade policial por 100 mil habitantes, os negros e pardos têm três vezes mais chance de morrer do que não negros e pardos. Isso no estado, porque na Capital esse número pode ser até sete vezes maior. Então, assim, é algo gritante. Em São Paulo e Minas Gerais, onde havia esses dados quantitativos (no RS não foram disponibilizados os números para a pesquisa), eles eram utilizados nas entrevistas. Por exemplo, eu pergunto se existe racismo e a pessoa me diz que não. Mostro os dados e pergunto então o que a pessoa acha deles, peço para explicar. Porque a ideia das entrevistas era entender o que os policiais e a Polícia entendiam sobre a questão racial.

Os policiais evidenciam que existe essa questão do racismo?

Não. Juntando todas as entrevistas, foram 80 policiais entrevistados. A primeira resposta quando se chega para falar com eles é de que não existe, que a ação da polícia não é direcionada pela questão racial. Então tentávamos entrar mais a fundo, perguntando como é direcionada a abordagem, como se identifica um suspeito, como é feita a ação. E eles falavam mais em características corporais, de vestimenta, de gesto, modo de andar, de olhar e até de cortar o cabelo. Era esse combo. O que nos demos conta: que não eram atitudes pessoais, já havia uma padronização do que se considerava suspeito. E eram sempre de tipos físicos estigmatizados. Ou seja, vai ser aquele estereótipo sobre o corpo com características culturais forjadas pelo racismo. Porque também estamos falando de uma sociedade edificada em um período de escravização, com essa base racial, que é a brasileira.

Mesmo levando em conta que não foi uma ação policial e sim, por parte de seguranças, mas dentro desse contexto da abordagem, o caso da morte de João Alberto no Carrefour é um caso isolado?

É complexo discutir isso, mas não, não acho que foi um caso isolado. A gente vive em uma sociedade que já é racializada, com uma base racista estrutural forte e pouco discutida. No Brasil, entre 2008 e 2018, os homicídios de homens negros e pardos subiu 11,5% e o de não negros e pardos caiu 12%. Já tem aí uma padronização de atuação. Ao mesmo tempo que os negros e pardos representam 56,6% da população brasileira, mas são 74,4% das vítimas de violência letal e 66,4% da população carcerária do Brasil. Então não tem como pegar um caso isolado de uma pessoa que é espancada por cinco minutos e morta dentro de um contexto em que esses dados estão girando. Me parece que existe um imaginário social de também existir um suspeito e um criminoso na cabeça das pessoas, como sociedade.

Por que em um país como o Brasil ainda se estigmatiza uma população que é maioria, como é o caso de negros e pardos?

Acho que têm várias coisas. Pensando na questão da Polícia, de segurança pública, acho que primeiro é uma base histórica, do período da escravização. Desde essa época, existe essa ideia de lei e ordem, de vigilância voltada para essas pessoas, que eram escravos e ex-escravos. Existia essa ideia de que o negro precisa ser olhado, vigiado, e, para manter a ordem, ele precisa estar no lugar dele, quieto lá. E é nessa época também que se cria uma “ciência”, um aparato que vai defendendo que o negro e o branco são diferentes, que existe uma hierarquia racial, com o branco lá em cima e o negro lá embaixo e, por isso, o negro seria mais perigoso, mais propenso a cometer crimes. E juristas na época começam a trabalhar com isso. Ou seja, se forma uma “base científica” muito forte desde aquela época. E até hoje se tem essa ideia de que negros cometem mais crimes, ainda existe essa reprodução. Só que ao se cruzar os dados de São Paulo, por exemplo, se vê que os crimes mais violentos ocorrem em áreas da cidade e em horários que não são os mesmos que as ações policiais mais violentas acontecem. Ou seja, as polícias vão executar o planejamento não de acordo com os crimes mais violentos, mas sim de acordo com os suspeitos. Os crimes estão acontecendo de um lado e a polícia está atuando do outro, os dados não batem. O que quebra essa tese de que negros cometem mais crimes porque são mais pobres.

Por onde a polícia vê uma saída para melhorar essa situação?

Uma coisa legal é que, por mais que eles neguem o racismo, quando se fala com policiais negros, eles conseguem enxergar o racismo dentro da instituição, muito mais que os brancos. E eles se dão conta de que, quando não estão com a farda e estão fora da instituição, onde não sabem que eles são policiais, eles têm medo de serem abordados pelos próprios policiais. Ou seja, eles se dão conta. Eles se darem conta já é um momento de se começar a discutir, eles saíam com esse questionamento. Não se discute racismo dentro da Polícia, com e para os policiais, no sentido de treinamento para fora também. E, quando é negado, não há mudanças. E mais, além de mais negros morrerem em operações policiais, também são negros policiais que morrem mais. Dos dois lados da moeda, se matam mais negros.


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