Marcelo Carvalho: "Racismo não se resolve com pedido de desculpas"

Marcelo Carvalho: "Racismo não se resolve com pedido de desculpas"

Carlos Corrêa

Marcelo Carvalho, idealizador e diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol

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A cada ano, desde 2014, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol publica relatórios sobre os casos de racismo e outros tipos de preconceito no futebol, com ênfase no cenário brasileiro. Idealizador e diretor executivo do projeto, Marcelo Carvalho conversou com o +Domingo sobre os resultados do levantamento de 2020, revelado há poucos dias. Apesar da queda mostrada nos números, Carvalho pondera que o futebol parou por três meses no ano passado e depois voltou sem público. Além disso, fala das mudanças no cenário do futebol brasileiro nos últimos anos e lembra que a questão do racismo está longe de ser um problema próximo de uma solução, tanto dentro como fora dos campos.

O que aponta o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol em relação ao ano de 2020?

Em relação aos anos anteriores, a diferença é que tivemos diminuição de casos, se olharmos apenas os números e os gráficos (no Brasil, a queda foi de 136 casos em 2019 para 68 em 2020). Pode se imaginar que tenha acontecido uma queda, mas não necessariamente. Os casos diminuíram porque tivemos três meses sem futebol no ano passado e depois o restante do ano sem torcida. O que fica desse fato é que o torcedor no estádio é um dos principais fatores de casos de racismo.

Neste sentido, então é de imaginar que o número de casos volte a ser mais alto no próximo relatório?

Estamos em outubro de 2021 e já monitoramos 43 denúncias de racismo no futebol brasileiro este ano. Conforme a torcida vai voltando, as denúncias vão aumentando. Mas há mais coisas. Sem público nos estádios, os torcedores estão mais atentos ao que está sendo transmitido em outros veículos de comunicação que não dávamos tanta atenções antes, como algumas transmissões por streaming. E aí se percebe que esses canais têm muitos casos de racismo, tanto por parte de comentaristas como de narradores. A gente percebe que o insulto está presente de outras formas que não apenas a injúria, o xingamento. Pode estar no apelido, em algum traço físico do jogador negro, uma referência ao cabelo, por exemplo. Então, neste sentido, está aparecendo uma maior conscientização dos torcedores quanto a esse tipo de caso.

São novos casos de racismo que surgem de formas diferentes?

Isso. Enquanto sociedade, o racismo não está apenas no insulto. Ele aparece na referência do cabelo, nos traços das pessoas negras, nos apelidos que são dados aos jogadores. É o jogador negro sendo chamado de crioulo. Antes, a gente, como sociedade não denunciava. Primeiro, porque de um lado os negros que não aceitavam esse tipo de coisa não tinham voz. E quem tinha, não percebia tudo isso como racismo. Então, conforme o debate aumenta, percebemos uma maior conscientização do que é racismo por parte da sociedade.

Há um escrutínio maior, principalmente nas redes sociais, em torno das denúncias? Hoje, é mais difícil um caso de racismo passar despercebido?

É algo a se destacar nas denúncias que vem sendo feitas. Elas aumentaram, até porque agora as pessoas fazem esse recorte, gravam o vídeo de um comentário racista sendo feito. Em relação aos veículos de comunicação, temos colocado no Relatório a partir de 2017, antes eram apenas casos verificados ou no campo e nos estádios ou no âmbito da internet, nas redes sociais. E aí vamos percebendo que o racismo está nestes outros espaços. E essa percepção acontece porque há um outro olhar da sociedade, um olhar muito baseado nesse debate que estamos ampliando. Fica muito notório que antes, se considerava racismo apenas quando vinha o insulto, o xingamento. Parecia que era só isso, quando não. E outra coisa importante, de alguns anos para cá também mostramos que o racismo pode estar presente na própria ausência de treinadores e de dirigentes negros. As falas sempre ocorreram, mas agora se percebe que o problema vai além delas.

A partir dos casos verificados, que mudanças são percebidas na comparação com os relatórios de anos anteriores?

Uma das coisas que me chama a atenção é o aumento do coletivo de torcedores. Mulheres, a comunidade LGBT, coletivos de negros que vêm se organizando de fora para dentro dos clubes e levando essas pautas para o debate. Não são pessoas que estão lá dentro do clube, mas conseguem fazer com que a pauta seja debatida a ponto de os clubes levarem para dentro. A partir daí, os clubes estão tomando ações que vão além de publicações em datas comemorativas.

Paradoxalmente, é algo acontece em uma época em que um discurso oposto a tudo isso também ganha força, não?

A gente tem meio que uma corda sendo puxada para dois lados. Enquanto de um lado existe uma parte de torcedores que afirmam que estamos tentando pautar o mundo, que criticam essa coisa toda do politicamente correto, do lado de cá existe gente preocupada com as minorias. Mas percebemos que dentro dos clubes a reação está pendendo para essa atenção com as minorias. Por mais que os conselheiros e os presidentes dos clubes eventualmente não estejam alinhados, não há coragem de ocupar os espaços públicos e dizer que não interessa. Até porque isso é lucrativo também.


Isso desmistifica a teoria de que levantar as bandeiras destas causas não é lucrativo?

Sem dúvida. É lucrativo para os clubes levantar essas bandeiras. Muitas ações dos clubes ligadas à venda de camisas dá lucro. Isso acaba com o mito de que “quem lacra, não lucra”. Do contrário, não veríamos um crescimento de vendas ligadas às pautas contra o racismo.

Para além dos casos de racismo, o Relatório Anual da Discriminação Racial no Futebol também registra casos de preconceito relacionados à homofobia e ao machismo. Nestes casos, também é possível verificar mudanças ao longo desses últimos anos?

Em relação à homofobia, é possível perceber que as entidades vêm julgando mais esses casos, sejam os Superiores Tribunais de Justiça Desportiva (STJD), sejam outras esferas. Essa é a grande diferença. De 2019 para cá, tem muito mais caso sendo julgado. Até porque antes disso, no âmbito esportivo, nem era algo que se considerava ser julgado.

Mas na comparação com o racismo, por exemplo, essa é uma bandeira que ainda está carece de mais apoio, não?

Sim. Até porque o racismo é crime desde 1988, enquanto a homofobia ainda não. E tem outro fator muito importante neste caso. Não há, no futebol brasileiro, um jogador que seja assumidamente homossexual, assim como não há uma comunidade LGBT dentro do futebol. E não falo só de jogador, mas isso vale também para dirigentes. Não tenho conhecimento de alguém que exerça uma função de destaque no futebol brasileiro que se declare LGBT. Isso tanto nos clubes como nas federações. É claro que se falarmos isso pensando no futebol masculino. No futebol feminino, o cenário já é outro, há muito mais jogadoras que assumem a sua homossexualidade.

Nos relatórios dos anos anteriores, sempre chamou a atenção o número de casos de racismo que eram verificados no Rio Grande do Sul. Em 2019, por exemplo, eles representavam mais de um terço (32% dos 53 verificados). Neste ano, esse percentual caiu (23% dos 17 casos). Isso significa que há uma tendência de queda nos casos aqui no Estado?

É um ano complicado para se falar por causa da parada em função da pandemia da Covid-19 e depois da volta sem torcida nos estádios. O que é um desenho muito cruel que se faz quando se fala nos casos de racismo no futebol gaúcho é que as pessoas envolvidas ainda não conseguiram perceber o que é racismo. Quando no próprio sistema de som do estádio se coloca uma música que fala em macaco, com conotação racista, como aconteceu no clássico entre Brasil x Pelotas (em agosto deste ano, cânticos discriminatórios foram colocados pelo próprio Pelotas. O clube posteriormente desculpou-se e foi punido pelo TJD-RS em R$ 5 mil, mas escapou da punição com a perda de pontos), isso nos mostra o tamanho da diferença de percepção sobre como é entendido pelo outro lado tudo aquilo que a gente denuncia.

Muitos casos também não avançam porque os próprios jogadores não levam a denúncia adiante. O quanto isso impacta nessa luta contra o racismo?

Esse é um ponto chave no processo. Se antes o jogador entendia o racismo como algo tolerável, de 2014 para cá, não, ele está denunciando. Mas sim, muitas vezes essa denúncia acontece no microfone, na saída do jogo, mas não é levada para a delegacia, para a Justiça. A sociedade não está conseguindo comunicar com a vítima o entendimento do que é necessário fazer para que o caso seja penalizado. Não basta abrir o boletim de ocorrência, é preciso ir à Justiça. E outra coisa, um pedido de desculpas não é o suficiente. Não, gente, racismo é crime, não pode ser resolvido com um pedido de desculpas. Às vezes eu vejo casos onde tentam colocar o acusado com a vítima para fazer o pedido de desculpas. Não, tu estás expondo a vítima nestes casos. Porque se colocam a vítima junto do agressor e ele não aceita um pedido de desculpas, ele passa a ser encarado como o intolerante. Acaba tendo que aceitar, mesmo que não queira. É uma nova exposição. Então, nesses casos, simplesmente colocar o agressor junto da vítima para que ele se desculpe nada mais é do que colocar a vítima mais uma vez em uma situação de violência.


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