Serviços públicos regulados

Serviços públicos regulados

Felipe Samuel

Rosa Maria de Campos Aranovich, procuradora do Estado aposentada

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Doutora em Direito pela Ufrgs, com tese sobre as agências reguladoras, a procuradora do Estado aposentada Rosa Maria de Campos Aranovich destaca a importância desses órgãos de fiscalização e controle em setores como transportes e energia elétrica. Ela comenta ainda o surgimento das agências reguladoras no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e admite que poucas pessoas reconhecem o papel dessas autarquias. Professora da Faculdade de Direito da Ufrgs e ex-diretora jurídica da Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), Rosa Maria reforça a importância do trabalho da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em meio à pandemia e observa que sempre há tentativas de influências políticas.

Qual a importância das agências reguladoras durante a pandemia, principalmente na mediação de conflitos de interesse, muitas vezes entre União, estados e municípios?

Gostaria de traçar um panorama genérico de todas elas e mostrar qual razão do surgimento no Direito brasileiro, que foi na década de 1990. O Estado brasileiro, a Constituição, estabelece uma série de serviços que considera públicos. Por exemplo: transporte, energia elétrica, tudo é serviço público. E o Estado desempenhava isso diretamente. Daí veio a ideia, copiando outros países, especialmente EUA e Europa, que esses serviços ficariam mais bem realizados se fossem executados pela iniciativa privada.
Então vieram as concessões e as agências, que não é o caso da Anvisa, mas têm a Aneel, como agência reguladora de energia elétrica, a Anatel, de telefonia. Qual é o papel delas? Elas não vão executar, mas vão controlar as concessionárias que executam o serviço. Antes, o Poder Público realizava todos os serviços e o controle não era muito bem feito ou executado. Por isso, quando passa para iniciativa privada, a partir de um contrato de concessão, entra o papel das agências reguladoras, que foram criadas a partir de 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).

São autarquias estatais especiais que têm que regular esses serviços, saber se são bem executados. É um controle que não é absolutamente político, é técnico. A agência não vai traçar políticas públicas, ela tem que controlar para ver se está sendo bem executado, se o contrato está sendo bem obedecido. Esses serviços, quando passam para a iniciativa privada, têm um valor. Por exemplo, nas estradas, as concessões que são feitas têm cobrança de pedágios. Energia elétrica também, se paga um valor para exercer. E a agência reguladora, que é uma autarquia do estado, vai controlar esses serviços. A gente paga uma taxa para elas controlarem. Um exemplo bem típico é o da conta de telefonia, está lá anunciado que tem uma parte da taxa que se paga para a Anatel. Eu lecionei essa questão e dizia sempre para meus alunos: “Se vocês têm alguma coisa para reclamar dessas prestadoras de serviço, as concessionárias, reclamam para as concessionárias e não são atendidos, reclamem para agência reguladora, porque ela tem poder até de punir, de sanções”. No caso da Anvisa é um pouco diferente, porque não tem concessão. A Anvisa foi criada com a finalidade de promover, controlar a saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços. Vai exercer essa vigilância sanitária, no caso, um órgão técnico que vai resolver, por exemplo, a questão de remédios e vacinas. A confusão que surgiu durante a pandemia é a questão da autorização das vacinas, tem um processo para verificar e estabelecer se estão corretas. A produtora de vacinas tem que levar a documentação para comprovar se está correta. Mesmo que em uma pandemia, como estamos vivendo, outros países já tenham autorizado, tem que passar pela nossa agência reguladora. Essas agências são relativamente novas e há uma tentativa sempre de a autoridade pública querer fazer certo controle político, mas elas devem exercer sua função. São técnicos habilitados, formados para fazer esse serviço que não é propriamente político.

A senhora falou que os próprios alunos de Direito desconhecem o trabalho dessas agências reguladoras...

Sim, todo mundo desconhece.

Poucas pessoas sabem efetivamente qual o papel dessas agências, fora a Aneel, que talvez seja uma das mais demandadas. Isso tem relação com a pouca atuação das agências reguladoras?

Como elas são relativamente novas e esses serviços eram executados pelo Poder Público, as pessoas confundem e não conseguem ver bem qual o papel da agência. Assim como falam, por exemplo, que com as concessionárias foi privatizado determinado serviço. Aqui no Estado se discute a questão da privatização da Corsan, da água. O serviço, em realidade, continua, ele não é privatizado, ele continua sendo serviço público, mas é executado por um particular que ganhou uma concorrência por tempo determinado. Trabalhei em agência reguladora do Estado, a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (Agergs), e ela controla alguns serviços, como estradas e energia elétrica. Energia elétrica é um serviço federal, mas a União passou, através da Aneel, a questão de regular e controlar esse serviço no RS para essa agência estadual. Essa falta de conhecimento mais preciso das agências ocorre porque é algo novo e porque se encara como um prolongamento do Poder Público e acham que faz política igual. Serviço público é uma coisa complicada, tem a teoria da captura, quer dizer, as entidades privadas muitas vezes tentam captar, influir nas decisões técnicas das agências com critérios políticos, é uma coisa meio complicada. Não sei se no Brasil ainda está se fazendo tão bem. Tem algumas, como Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que são mais conhecidas. Há a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e outras tantas que não são tão conhecidas.

E outra coisa que caracteriza essa independência, essa autonomia que tem que ter, é que os dirigentes dessas agências são indicados pelo governo, mas se considera como mandato. O que isso quer dizer? Que o governo não pode tirar antes do prazo aqueles que foram indicados e aprovados para serem diretores. E a decisão sempre deve ser colegiada, não é o presidente da agência que toma a decisão de dar uma opinião técnica. Ele vai ouvir o colegiado. As pessoas não entendem, por isso optei por escrever tese de doutorado quando fui trabalhar como procuradora e depois fui para a Agergs como assessora jurídica. Vi que realmente o modelo não é conhecido. Entre os diretores da agência que fazem parte do colegiado tem que ter alguém que represente os consumidores, é uma composição que é para ser não só de autoridades públicas, tem que ter representantes dos consumidores desses serviços.

A criação dessas agências ocorreu durante o governo FHC e, no governo Lula, estranhava-se muito esse poder que era dado para as agências, de ter autonomia nas suas decisões técnicas e também de não poder tirar diretores e colocar pessoas de sua confiança política. Elas enfraqueceram um pouco, mas acho que agora estão voltando. Um dos depoimentos da CPI colhido recentemente no Senado, o do dirigente da Anvisa (diretor-presidente Antônio Barra Torres), foi muito técnico, firme, diferente de outros. De certa forma, essas agências mais antigas, que abrangem um serviço mais importante para a comunidade, em maior escala, estão adquirindo essas características de autonomia, de não sofrer influências políticas. As agências foram criadas para observar controle, prevenir e até fazer sanções nas questões técnicas.

A senhora citou a questão da influência política. Qual solução para melhorar a divulgação do trabalho dessas agências e mostrar à população a atuação delas?

Acho que é preciso o amadurecimento dessas agências, que são relativamente novas. Agora com a pandemia da Covid-19, por causa da Anvisa, estão aparecendo mais. As pessoas por vezes não entendem. A agência foi muito criticada por algumas atitudes, pelo tempo que levou para avaliar e dar registro da vacina. Mas as pessoas não pensam o contrário. Vai que uma aprovação rápida, sem todas as cautelas, causa um problema maior do que a própria pandemia. Claro que toda vacina tem algum risco, mas não pode ser uma coisa em avalanche. Tem que ter cuidado. Nos EUA, a maior parte dos serviços são privados, então a função delas (das agências) é controlar a atividade econômica para não haver exageros. Por exemplo, uma agência (brasileira) é o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que tem que controlar a concorrência e não tem relação com serviço público concedido. É mais compreendido porque está funcionando há mais tempo.

Quais são os principais desafios dos setores regulados no pós-pandemia?

A pandemia está mudando muitas coisas, muitas pessoas da iniciativa privada estão conseguindo ter criatividade, saindo para outros lados, e acho que vai sair um número maior de empreendedores. Dá para entender que o poder público de alguma forma - não um regime socialista, não é passar a atividade privada para o poder público -, tem que ter algum controle, não pode deixar tudo ao sabor do mercado. Seria atividade das agências coibir excessos do mercado. Quando o próprio poder Executivo, o Estado, a União, executava todos aqueles serviços, com estatais imensas, o controle, a fiscalização, não existiam muito. Por isso que se procurou criar essas agências, como em outros países, para que houvesse fiscalização maior e não o poder público fiscalizando a si mesmo, que não tem muito resultado.

Que agências a senhora destacaria aqui no Brasil?

Anatel e Aneel foram as primeiras criadas, depois tem a ANA, a ANP, tem outras tantas. Os estados têm algumas, a maior parte é da União porque é um serviço público federal que a Constituição atribui à União. Tem a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que já teve bem conturbada numa época marcada por atrasos de voos, mas depois se resolveu. A Ancine também não vingou muito.


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