Tarso Genro: "A questão democrática é a questão essencial que deve unir todos os brasileiros"

Tarso Genro: "A questão democrática é a questão essencial que deve unir todos os brasileiros"

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 “A questão democrática é a questão essencial que deve unir todos os brasileiros”, diz Tarso Genro Foto: Samuel Maciel / Especial / CP “A questão democrática é a questão essencial que deve unir todos os brasileiros”, diz Tarso Genro / Foto: Samuel Maciel


Afastado dos mandatos eletivos desde 2014, quando não obteve sucesso em sua tentativa de reeleição ao Palácio  Piratini, o ex-governador Tarso Genro faz uma análise crítica do atual momento pelo qual passa o Brasil.  Ex-prefeito de Porto Alegre em duas gestões e ministro dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva em  diferentes pastas, o petista, que hoje divide seu tempo entre a advocacia e as articulações para uma frente  política de esquerda no país, concedeu entrevista ao Correio do Povo na qual analisa o acirramento das posições na  sociedade e as responsabilidades dos atores do cenário político. Cobra posicionamentos da esquerda.  E projeta as possibilidades que se colocam para o futuro da democracia.

Correio do Povo: Muitas cidades no país, entre elas Porto Alegre, acabaram de passar por eleições marcadas por agressões e episódios violentos. Fala-se na intensificação do ódio na política, que segue em ascensão desde 2014. O senhor vislumbra alguma alteração?

Tarso Genro: Estamos em um macroprocesso de aniquilamento dos partidos e lideranças e de uma politização profunda de parte do poder Judiciário como um ator político sobre o qual não há controle e nenhum tipo de correição possível no momento. Isso só ocorre quando existe uma perversão do funcionamento da máquina estatal, no qual ela é dominada por interesses não explicitados, ou explicitados de maneira desonesta. É um cenário no qual lideranças de diversos partidos, setores do Judiciário e da imprensa projetaram, em nome do combate à corrupção, um grande movimento de desarticulação do sistema político e demonização da política.

A consequência é que os valores que regem a vida republicana começam a ser desmantelados, atingindo o funcionamento democrático das instituições, o que é típico de regimes de exceção. A desarticulação da política poderá levar a uma situação de anomia, de luta política fora dos padrões civilizatórios. Ela poderá desembocar em um retrocesso. Esse retrocesso não será um golpe militar. Será o amortecimento da democracia e a fuga das pessoas da política em direção a sua vida privada, o que permitirá que a plutocracia estatal e o grande capital financeiro que dominam o Estado façam a política por todos.

CP: O senhor defende mudanças em relação a um maior controle sobre o Judiciário?
Tarso Genro: O Judiciário tem mecanismos de controle. O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público têm essa finalidade. O problema é que a cultura política do país foi sendo gradativamente corroída e repousa hoje no Judiciário e no Ministério Público uma expectativa de redenção da República. Esta expectativa foi muito bem aproveitada pelo capital financeiro, em conjunto com setores da mídia, para viabilizar as reformas em curso.

Os movimentos do Ministério Público e do Judiciário para combater a corrupção foram instrumentalizados para outros fins. Neste cenário, dois piores podem acontecer. Um seria uma partidarização e uma politização tão completa do Judiciário ao ponto de criar uma ditadura jacobina. Apesar do período que passamos, não vejo esta propensão. O outro seria o Judiciário perder sua autoridade, encarando a exceção como normalidade. Só que esta inflexão já começa a passar por um processo de desgaste. Acredito que em algum momento os tribunais superiores adequarão os processos ao sentido estrito da legalidade. E que ocorrerá uma intoxicação da campanha midiática feita contra a esquerda e o PT. A população já começa a desconfiar das finalidades desta campanha.

CP: O senhor pode explicar melhor o "amortecimento da democracia"?
Tarso Genro: O que ocorre no Brasil, como processo, não é diferente do que acontece em alguns países europeus. Só que as consequências são muito diferentes. Nos países europeus que tiveram padrão de vida social democrata, as pessoas saem da classe média e ainda permanecem em uma pobreza decente. No Brasil, quando tivermos todas as consequências do atual ajuste, as pessoas sairão da pobreza decente para a miséria e a exclusão, com consequências no panorama geral da democracia.

CP: O senhor relaciona o ajuste promovido pelo presidente Michel Temer ao acirramento de posições políticas e sociais?
Tarso Genro: O ajuste tem dois movimentos estratégicos. Um é o congelamento do orçamento, que vai crescer apenas pela variação da inflação. Assim, a única rubrica com possibilidade de crescimento será a dos juros, serviços e rolagem da dívida. Portanto, a dívida, que hoje alcança 38%, 40% do orçamento público, pode passar a algo entre 60% e 70%. Isto terá efeito devastador. Esta mudança poderá resultar em uma insatisfação que amorteça os movimentos e gere passividade e desesperança. Quando isso acontece e as pessoas desistem da política, quem ocupa o espaço são a marginalidade e a burocracia. O segundo movimento é a abertura do pré-sal, uma lesão de longo prazo à soberania nacional. Não é possível determinar se o ajuste vai se realizar na plenitude que o governo deseja. Mas minha análise é um pouco pessimista porque estes movimentos pegam a sociedade brasileira em um momento de muita desagregação, com um sistema político vencido. E isso pode levar a movimentações anárquicas, choques sociais sem finalidade e falta de lideranças para encaminhar os processos de reversão por dentro da democracia. Acredito que há uma alternativa autoritária que pode estar se formando, mas que não se sabe bem ainda qual é.

CP: O senhor se refere ao fortalecimento de setores de direita ou a um centro apontado pela própria classe política como instável?
Tarso Genro: A direita entrar no parlamento e participar da vida política é positivo para a democracia pois permite o cotejamento de programas, ideologias, visões de mundo e de humanidade. Mas o mais importante é a emergência de um centro coerente porque, sem ele, não há democracia que funcione adequadamente. Ele pode ser liberal, liberal de direita, com tendência à direita, ou voltado para a centro-esquerda, ou com um acordo à esquerda. O PMDB, que ocupava este papel, e funcionou como mecanismo de estabilização da transição pós Constituição de 1988, hoje é um conjunto de aglomerados regionais voltados para conveniências relacionadas com a máquina de poder. O sistema político brasileiro hoje e as posições que o disputam não têm nenhum centro para se apoiar. É necessário que tenhamos um centro civilizado, programático, um centro político claro.

CP: É uma desestruturação do sistema político ou da sociedade?
Tarso Genro: Quando as classes sociais deixam de ter porta-vozes sociais estruturados perdem sua identidade e sua capacidade de negociar. Foi esta capacidade que fez germinar a social democracia moderna. O que temos no Brasil é um início de desestruturação da sociedade de classes que estava relativamente organizada. Transitamos desta relativa organização para uma situação de desemprego, anomia e falta de identidade. Em momentos como este que aparece o gérmen do autoritarismo e do fascismo, que se expressa de diversas formas. As mais frequentes são o ódio à política, a violência de rua e o chamamento ao líder, desqualificando partidos e instituições da sociedade civil. O fascismo é um elemento de definhamento do processo civilizatório que ocorre em momentos de crise. Hoje a questão democrática é a questão essencial que deve unir todos os brasileiros. Unir uma visão de defesa da democracia, das instituições, de renovação do sistema político e de organização das condições jurídicas para um sistema partidário mais autêntico é a forma mais correta de resistir ao gérmen do fascismo.

CP: Há condições para esta união? A população não parece um tanto desinteressada ou afastada?
Tarso Genro: É necessário criar um novo conceito de coalizão governamental. Este afastamento não é incomum. Se examinarmos a crise da República de Weimar, que é um paralelo importante, perceberemos que a passividade e a desesperança são elementos fundamentais para o autoritarismo. Hoje temos no Brasil uma grande onda de desesperança e de descrença na política. Só que houve um trabalho meticuloso da direita e dos que estavam interessados na deposição da presidente Dilma com o objetivo de aplicar o ajuste. Só que, após chegarem ao poder, esses setores tentaram recuperar a esperança da sociedade. Isto indica que não poderão aplicar suas receitas exclusivamente pelo autoritarismo.

CP: Qual a responsabilidade da esquerda em todo este processo?
Tarso Genro: É notório que setores da esquerda e pessoas com funções dirigentes utilizaram os mesmos métodos tradicionais de financiamento de campanhas, de vinculação com o Estado, experimentados no Brasil desde a República Velha. Só que isto não significa que o PT ou os partidos de esquerda sejam responsáveis pela corrupção no país. Isso é uma fraude, uma mentira. É aí que se torcem as instituições para que elas cumpram finalidades políticas dentro da exceção. Eu não me insurjo contra o direito e o dever que o juiz Sérgio Moro e o Ministério Público têm de investigar e de processar seja quem for. Agora, os métodos, a seletividade, os vazamentos coordenados, as ações processuais e investigações para incidir na esfera da política não se justificam em um regime democrático. São movimentos de exceção.

CP: A esquerda tem dificuldades em apresentar um discurso afinado e mais adequado ao atual momento?
Tarso Genro: Em um determinado momento antes da Segunda Guerra a esquerda se apresentava como revolucionária e identificou a social-democracia como social-fascismo. O resultado foi a divisão do movimento operário, da intelectualidade progressista e dos setores médios que tinham simpatia pela democracia, com a emergência do fascismo na Europa. Há setores da esquerda que raciocinam ainda em ‘tomar o Palácio de Inverno’ e instaurar o socialismo a partir da força estatal. Essa visão despreza a visão frentista, porque acredita simbolizar uma espécie de centelha redentora da história. Temos que trabalhar hoje tendo como centralidade a questão da democracia. Não acho que haverá um momento de centelha revolucionária e de ruptura de tudo e que, a partir dele, vamos erguer o paraíso. É um dever de uma frente política de esquerda ou de centro-esquerda apresentar algo concreto sobre a crise. E disputar o conceito de ajuste. É pacífico que a economia brasileira precisa de ajuste. Chegamos a um momento em que começamos a financiar as políticas públicas com aumento da dívida, ou seja, aumento da subordinação ao capital financeiro globalizado. Não apresentamos alternativas para sair da crise por uma visão social democrata ou pela esquerda. Temos que apresentar isto de forma clara. Qual nosso conceito de ajuste? Qual nossa reforma da previdência? Como financiar a previdência pública? Como tributar os ricos? Qual nosso projeto de imposto sobre herança e de reescalonamento do imposto de renda para aumentar o poder de consumo da classe média e dar mais moderação aos gastos supérfluos dos ricos? Como taxar lucros de capital? Enfim, qual o ajuste para manter conquistas sociais democráticas ou socialistas dentro da sociedade capitalista? A apresentação de uma sociedade idílica, pacificada e igualitária no futuro não ganha a consciência da maioria porque as pessoas não vivem na história, elas vivem no presente. E quem vive no presente quer respostas para sua vida imediata. A esquerda precisa compreender com mais profundidade estas questões. A grande utopia hoje, lamentavelmente, não é igualdade social. É fazer a democracia e a república funcionarem. E isso, nas condições internacionais que estão dadas, é uma utopia bastante ousada.

Por Flavia Bemfica

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