Os donos da água

Os donos da água

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Fotos: Pedro Revillion
Texto: Carlos Correa

"Esta data é o alvorecer da nossa liberdade". Para a história da humanidade, talvez a afirmação proferida por Nelson Mandela ao assumir o cargo de presidente da África do Sul seja a mais importante do dia 25 de maio de 1994. No entanto, na casa dos Flores Ferreira, à época ainda em Porto Alegre, outra frase começaria a ser dita naquele dia e repetida pelos 18 seguintes. Era um simples e sucinto "Não".

Jean e Luan Flores Ferreira estavam com pressa. Chegaram ao mundo dias antes que se completasse o sexto mês de gestação de Evonir. A medicina aponta como arriscada uma prematuridade abaixo de 30 semanas, com riscos maiores a partir de 27. Os gêmeos nasceram com 23. "Eles foram desenganados pelos médicos. Ficaram os primeiros 18 dias na UTI. O doutor foi falar com o meu marido e disse que mesmo se sobrevivessem, teriam sequelas. Perguntaram então se queríamos desligar os aparelhos", relembra Evonir. Para muitos, pode ser uma decisão difícil. Para ela, nunca houve dúvida: "Não".

Os gêmeos não deixaram o Hospital Conceição antes dos seis meses. Depois de quase três semanas na UTI, houve ainda um longo tempo enfrentando complicações e mamando apenas via sonda. As sequelas, contudo, apareceram na forma de deficiência intelectual. Enquanto a maioria das crianças começa a caminhar por volta de um ano, Jean e Luan ensaiaram os primeiros passos apenas com dois anos e oito meses. Depois disso, as dificuldades motoras ainda faziam com que até os 5 anos eles caíssem com frequência e tivessem, no caso de Jean, um imenso trabalho para tarefas corriqueiras como segurar um lápis.



A indicação dos médicos foi a de procurar uma ajuda especializada. A família, que logo depois do nascimento dos garotos, mudou-se para Viamão, procurou então a Apae. Este foi, então, aquele momento em que Jean e Luan agregaram o substantivo "atleta" ao adjetivo "especiais" e conheceram outros guris na mesma condição, caso dos também gêmeos Dionata e Jonatas de Souza Garcia, de 16 anos. Por meio do Projeto Chuá, passaram a trabalhar os movimentos na piscina. Tomaram tanto gosto que chamaram a atenção da professora Geneci Weist, que passou a treiná-los também para alguns torneios. "Há mais interação nas competições. Não tem porque ficarem presos aqui", justifica ela.



Em outubro, Dionata e Jonatas participaram das Paralimpíadas Escolares, em São Paulo. Antes mesmo de alcançar a capital paulista, uma pequena vitória pessoal: superar o medo de viajar pela primeira vez de avião. No torneio em si, apesar de melhorarem seus tempos pessoais, ficaram apenas em posições intermediárias. Em uma das provas, por exemplo Dionata ia bem no nado borboleta, mas num lapso de atenção, fez com as pernas os movimentos do nado peito. Acabou desclassificado. A próxima chance de medalhas passa a ser nas XX Olimpíadas Especiais das Apaes, em Maringá (PR), no início de novembro.



Quem está acostumado a assistir a provas de natação com participantes do calibre de um César Cielo ou um Michael Phelps, percebe diferenças claras nos movimentos dos guris de Viamão. As braçadas por vezes não são tão alongadas, as mãos entram espalmadas na água vez por outra e até mesmo a largada às vezes tem um quê de barrigada. Pouco importa. Primeiro, porque mesmo com todas essas dificuldades, eles nadam mais rápido do que a imensa maioria das pessoas da mesma idade - especiais ou não. Segundo, porque para quem teve médicos sugerindo que seus aparelhos fossem desligados, o simples fato de levar uma vida normal e participar de competições nacionais vale mais do que qualquer medalha de ouro.











 

 

 

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