À sombra dos jacarandás em flor

À sombra dos jacarandás em flor

A volta da Feira do Livro de Porto Alegre

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    Desde os distantes anos 1950, quando Brasília ainda nem existia e o homem estava longe de pisar na lua, a Feira do Livro de Porto Alegre faz voar. Hoje, ela volta à praça, depois de uma ausência por causa da pandemia do coronavírus. Ainda não estará com o time completo. Nem todos os editores e livreiros de costume participarão. Sob as árvores floridas, os livros novamente darão o tom, as cores e as esperanças de vida melhor. Livro faz pensar numa historieta contada ao pé do fogo: numa terra distante, um homem viu-se acossado por animais selvagens junto a um precipício. Era morrer ou morrer. Salvo se a sua imaginação fosse rápida:
– Salte – disse-lhe um lobo – ou vamos te devorar.
    O homem considerou a altura da qual despencaria e a fúria dos animais que o encurralavam. Então uma fagulha se acendeu na sua mente.
– Adeus – disse.
    E voou. Ficaram os bichos a vê-lo bater asas sobre o vazio até desaparecer no horizonte, onde teria fundado uma cidade de gente livre.
– Fundar uma cidade? Mas ele não estava só – questionaria um ouvinte.
– Parece que ele encontrou outras pessoas que voavam.
– Isso não é verossímil.
– De fato, isso é imaginação.
    Livros são asas. A imagem pode ser simplória. O voo nunca deixa de ser complexo. Quantas páginas são necessárias para fazer um par de asas? Quantas asas fazem um livro? Um só livro já cria um mundo paralelo. Noutra cidade imaginária, perseguido por um déspota, um homem viveu oitenta anos refugiado na sua biblioteca. De manhã, plantava uma horta. De tarde, lia. À noite, via as estrelas e sonhava. Ao amanhecer, acreditava novamente no futuro. Foi assim que escreveu uma obra de dez mil páginas intitulada “Uma história da liberdade”. Epígrafe: ninguém amordaça a imaginação do leitor.
    Certamente é por isso que ditadores queimam livros ou nunca os abrem. Um livro fechado não suscita perguntas incômodas. O livro tem um poder de disseminação incontrolável. Basta uma pessoa ler um livro para que ele comece a se reproduzir atingindo até mesmo gente que não lê. Um livro é como a energia elétrica: cria um novo mundo mesmo que alguém não a use. Esse é o desespero dos obscurantistas. Não se pode ensinar a ler para que apenas as obras de quem ensina sejam lidas. A Feira do Livro de Porto Alegre faz parte do imaginário da cidade como o Guaíba, o Internacional e o Grêmio, a Redenção, o Laçador, esses símbolos de uma cultura afetiva.
    O leitor é um gato curioso. Caminha pelas estantes revelando uma silenciosa indiferença pelos riscos que corre. Há modismos, pressões, marketing, essas coisas que tentam domar a natureza selvagem do gosto. Tudo em vão. O gato continua soberano e distante. Quando menos se espera, está lá ele relando “Guerra e paz”, iluminado pela clareza das frases, seguindo o fio da história, livre de qualquer influência, espiando o mundo do teto, deliciando-se enquanto as horas voam e os títulos crescem, subindo pelas árvores da praça como heras ou como feras que não se dobram. Olha o livro na praça outra vez. É quando chega de fato a primavera.

 


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