1917, um bom filme com receita velha

1917, um bom filme com receita velha

Mais uma "jornada do herói"

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      O filme de Sam Mendes, “1917”, favorito ao Oscar, é bom, mas não é tudo isso. Se conta num gigantesco plano-sequência, que coloca o espectador dentro dos acontecimentos, uma história envolvente e mostra as trincheiras como poucos fizeram até hoje, aplica quase escolarmente uma fórmula muito conhecida, a “jornada do herói” teorizada por Joseph Campbell, com supressão ou adaptação de alguns passos: o chamado à aventura, a missão, recusa do chamado, influência, travessia do primeiro limiar, aceitação da missão, provações, inimigos, aliados, aproximação do ponto nevrálgico ou objetivo, realização da meta, reconhecimento e recompensa, ressurreição, caminho de volta, etc.

      Esses passos podem ser mais ou menos codificados, levemente alterados. Em “1917”, dois cabos, mergulhados na “normalidade” das trincheiras, são chamados para a grande aventura. Um deles, recebe uma missão impossível: atravessar as linhas inimigas. A isca é a salvação do seu irmão e de 1600 homens. Ele aceita. Pode levar um colega. O escolhido não quer ir, recusa, pede tempo de reflexão. Quem leu Campbell já sabe aí que o herói será esse segundo homem, aquele que inicialmente rejeita a tarefa. Faz parte da regra do gênero e do jogo. Na travessia do primeiro limiar, o futuro herói quase morre, sendo salvo por quem o colocou na aventura. Não há mais como recuar.

      Não contarei todo o filme. Direi apenas que o protagonista trocou um dia uma medalha de guerra por uma garrafa de vinho. A sequência de acontecimentos, encontros e desencontros, obstáculos, aliados e inimigos, fará dele quase um super-homem. Depois de aceitar integralmente a missão, terá de cumpri-la sozinho. Em alguns momentos, viverá situações de Sessão da Tarde, de Tarzan ou alguém assim. O filme pega, distrai e faz refletir sobre os horrores da guerra. Mas no quesito originalidade narrativa fica bem atrás de filmes como “Parasita”, “Coringa” e até dos brasileiros com os quais não concorre “Bacurau” e “A vida invisível”. Quem diz que originalidade é tudo?

      Oficinais literárias cada vez mais apostam na fórmula da “jornada do herói”. É um roteiro narrativo eficaz e claro: homem comum é convocado a fazer algo difícil. Recusa. As circunstâncias obrigam-no a dar os primeiros passos. Diante de um primeiro desafio ou provação, acaba comprometido com a missão. Aceita-a. No seu passado, há uma mácula ou falha a ser apagada. Na caminhada cheia de obstáculos para atingir o objetivo e cumprir a meta, com ajuda de ocasionais aliados e enfrentando terríveis inimigos, vence as resistências, supera as suas dúvidas, renasce como homem puro, recebe a recompensa e volta para casa. Campbell leu Homero e aplicou-lhe alguns temperos místicos.

      “Harry Potter” e Paulo Coelho, cada do seu jeito, seguem essa fórmula com sua terminologia esotérica: encontro com o mentor, aproximação da caverna secreta, retorno com o elixir. O cético volta a acreditar, o indiferente engaja-se. Filmes exploram truques narrativos consagrados. “Dois Papas”, de Fernando Meirelles, explora o par formal/informal à exaustão. Se Bento XVI era formal e Francisco informal, em algum momento eles teriam de comer pizzas com a mão.


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