A ditadura que se fingia de democracia

A ditadura que se fingia de democracia

Brasileiros não sabem mais o que foi o regime militar de 1964

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      A diferença entre o historiador e aquele que viveu determinada época costuma ser o conhecimento por investigação sistemática. Alguém pode ter vivido um tempo e não o conhecer profundamente. O que sabe o brasileiro dito comum sobre os bastidores do governo Bolsonaro? Dentro de 50 anos um historiador que debulhe toda a documentação sobre o período atual saberá mais do que a maioria de nós sobre o que estamos vivendo. Nada mais ingênuo do que a pessoa dizer, sem ter sido protagonista, que sabe por ter vivido determinado período. Boa parte dos brasileiros tem quase nenhuma informação sobre a ditadura de 1964.

      Os mais jovens desconhecem a ditadura admirada por Jair Bolsonaro por ignorância e falha no sistema educacional. Mesmo entre os mais velhos há distorções provocadas pela própria dinâmica do regime militar, que censurava inforamações, por exemplo, sobre corrupção. A Folha de S. Paulo vem publicando uma série sobre os anos de chumbo brasileiros: golpe, cassação de mandatos, rodízio de generais no poder, fechamento do Congresso Nacional, repressão, “suicídios” induzidos, aposentadoria compulsória de ministros do STF, prisões arbitrárias, extinção de partidos, mudanças nas regras eleitorais para beneficiar a Arena, o partido dos ditadores, senadores biônicos, censura a músicas, peças de teatro, filmes e demais manifestações culturais, censores instalados nas redações dos jornais.

      Nada que os historiadores já não tenham contado em centenas de livros. Eu mesmo fiz isso em “1964, golpe midiático-civil-militar” (Sulina) e em “Jango, a vida e a morte no exílio” (L&PM). A ditadura não foi um paraíso da segurança nem uma era sem roubalheira. A imagem de tranquilidade foi construída em cima da sonegação de notícias intranquilizadoras. Mesmo assim, não foi possível esconder tudo. Em “Jango...”, sobre a Comissão Geral de Investigações, assunto fartamente pesquisado por historiadores como Carlos Fico, escrevi: “Entre 1968 e 1973, quando a ditadura vivia seu apogeu tenebroso, com sua glória macabra, a CGI debulhou 1.153 processos de corrupção. Aprovou 41 confiscos de um total de 58 pedidos. Entre os investigados ou condenados, ‘mais de 41% dos atingidos eram políticos (prefeitos e parlamentares) e aproximadamente 36% eram funcionários públicos. Num único ato, em 1973, chegaram ao Sistema CGI cerca de 400 representações ou denúncias’”. Muita coisa morreu embaixo dos tapetes.

      Carlos Fico refletiu sobre os obstáculos ao combate aos desvios: “Em primeiro lugar, a impossibilidade de manter os militares num compartimento estanque, imunes à corrupção, notadamente quando já ocupavam tantos cargos importantes da estrutura administrativa federal. Não terão sido poucos os casos de processos interrompidos por causa da identificação de envolvimento de afiliados ao regime”. A Folha de S. Paulo só esqueceu até agora, na sua ótima série, de contar que apoiou o golpe de 1964 e a própria ditadura por muito tempo. Ainda dá tempo até de lembrar que chamou o duro regime de “ditabranda”.


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