A hipótese do volante de criação

A hipótese do volante de criação

publicidade

 Sempre gostei de futebol, que descobri, em Palomas, em 1970, aos oito anos de idade, ouvindo as transmissões da Rádio Guaíba na cobertura da Copa do Mundo do México. Ali, decidi ser jornalista. Estou entre aqueles que cultivam um simpático paradoxo: acham o futebol a mais importante das coisas irrelevantes. Sou colorado e ex-colorado. Já fui gremista. Não aprecio a fidelidade extrema a um clube. Vira fanatismo. Todo mundo que acompanha futebol entende do assunto. No entanto, é o ambiente em que mais se acusa o outro de nada entender. Basta pensar diferente. Especialistas erram também. A paixão e o desejo de prever o futuro comprometem a suposta frieza necessária às análises. É delicioso.

Comecei em jornalismo como repórter esportivo. Participo de programas de debates há 14 anos. Cada vez uso mais a minha própria linguagem. O russo Turgueniev, em “Pais e filhos”, romance que opõe antigos e modernos, ironizava os governantes modernos como moços, progressistas e déspotas. Hoje, seriam jovens, liberais conservadores e autoritários. Destacava também que o jovem tecnocrata moderno “empregava muito bem toda a terminologia correspondente ao caso”. A terminologia é fundamental. No futebol, chamo de neotáticos os jovens treinadores e comentaristas que defendem um novo paradigma. Não é uma ofensa. Pode ser uma constatação ou uma hipótese. O romântico adora o camisa dez criativo. O neotático admira um híbrido de utopia, que rotulo de volante de criação.

Futebol é metáfora da vida. O dez criativo, em extinção, é D’Alessandro, que os neotáticos detestam, embora neguem. Acham que ele atrasa o jogo. Há muitas maneiras de jogar futebol. Tem o jogador que corre com a bola e pode ser muito útil. Tem o que corre sem a bola a aparece no lugar certo para receber. Tem aquele que faz a bola correr. Os neotáticos idolatram o volante de criação, o jogador total, perfeito, completo, marca e ataca, defende e cria, desarma e passa bem, lança e dribla, destrói e constrói, fecha e abre espaços, toma, passa e aparece de surpresa na área para fazer gol, chuta bem de longe, cabeceia e arma. Nem Pelé foi tão completo. Muito menos Maradona, Messi e Cristiano Ronaldo.

Dizem que esse volante de criação existe. Muitos nomes são citados. Há sempre exceções para confirmar qualquer tese. Na média, o que se vê é muito bom baterista tocando medianamente guitarra. Uma coisa é a posição, que não se escolhe, descobre-se, e outra a função. Parece a vida. O futebol, como a vida, estraga as nossas melhores previsões todos os dias. O ultrapassado Felipão papou os neotáticos. Renato Portaluppi, o que nunca estudou futebol na Europa, tornou-se um dos mais cobiçados técnicos do país. Bolsonaro ganhou as eleições. Os neotáticos tendem a pensar que quem faz essas constatações prefere o antigo regime. Não necessariamente. Pode ser apenas uma forma de dizer “esses moços, pobres moços, ah, se eles soubessem o que eu sei...” Arrogância? Não. Velhice. Melhor: constatação do triunfo da pluralidade. Muitos são caminhos que levam a Roma e ao gol.

Joseph de Maistre dizia saber por Montesquieu que se podia ser até persa. Diógenes procurava um homem com sua lamparina. Eu procuro um volante de criação como o da lenda. Só acho marcadores e criadores. Assim.

*

Jair Bolsonaro é um volante de contenção que decidiu ser ponta-direita ao estilo antigo.

Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895