A menina que é dona de uma montanha

A menina que é dona de uma montanha

Crônica sobre a força do imaginário

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 Michel Maffesoli, o pensador que melhor descreve o que vivemos, para desespero dos positivistas de direita e dos marxistas, acaba de publicar um novo e potente livro, “A força do imaginário”. Estivemos no vilarejo onde ele nasceu, Graissessac, no sul da França. Ele nos recebeu na sua bela casa. Na volta para Montpellier, de carona com nosso amigo Phillipe Joron, ouvimos uma linda história contada por sua neta, Mélia, de oito anos, moradora da Ilha de Reunião, departamento francês no Oceano Índico.

– Eu tenho uma montanha – ela disse.

      Ficamos maravilhados. Fazia muito calor. A tal da canícula que tanto assusta os franceses. Temperaturas acima dos 40 graus. O sol faiscava no asfalto como num quadro impressionista. A conversa fluía com a suavidade de uma tarde para não se esquecer. A mãe de Mélia é brasileira. O pai, francês. Ela é bilíngue. Fala português com um doce sotaque. Linda.

– Quem te deu a montanha? – perguntamos.

– Meu pai.

– Posso ficar com a tua montanha? – pergunto.

– Talvez você possa ficar com a montanha do lado.

      Há uma criança eterna no homem que sabe jogar e brincar, diz Maffesoli. Esse é o espírito do imaginário, aquilo que se eleva acima do racionalismo e dá sentido ao que guardamos como muito especial. Mélia, como toda criança, une a fantasia e a racionalidade sem qualquer hesitação. Essa é a força do imaginário, esse encantamento infantil permanente que “magifica” o mundo tornando-o muito mais interessante.

­– A sua montanha está sozinha. Não tem medo que a roubem?

– Claro que não.

      O carro rodava nos 130 km/h permitidos na excelente estrada sem pedágio nem buracos ou remendos. Um tapete impecável mantido pelos impostos dos franceses. Cruzávamos vilarejos em cores suaves que sempre lembram casas de boneca. A sogra de Philippe, mãe da Clélia, é uma senhora de 97 anos de idade. Moradora de Recife, acha tudo muito uniforme nessa França profunda e milimetricamente organizada, “um lugar de mortos-vivos”. Ficamos todos em silêncio refletindo sobre a resposta perplexa da menina.

– Como pode ter certeza de que não vão roubar a tua montanha?

– Ninguém pode roubar uma montanha, ora.

      Há espanto na voz dela, uma voz de sininho. Parece dizer para os tolos: “Já viu alguém por aí com uma montanha nas costas?” Parece enfatizar aos ignorantes: “Uma montanha é muito pesada”. Ou estaria nos dizendo que as pessoas são honestas e que não devemos viver desconfiando delas? Rimos. Há muita lógica no seu raciocínio. Ela se orgulha de ser proprietária de uma montanha. É o seu tesouro. Conta que a sua cidade é linda. A viagem segue. Mélia dorme no banco de trás. Talvez sonhe com a sua montanha distante. Eu sonho com esse imaginário que nos faz voar.

 

     


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