A tortura no governo de Castelo Branco

A tortura no governo de Castelo Branco

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Por Márcio Moreira Alves

(em Torturas e torturados)
Um quadro geral das torturas, praticadas em larga escala por quase todo o Brasil, se foi formando pouco a pouco. Íamos publicando notícias, mas nenhuma providência era tomada. A imprensa governista — todos os jornais do Brasil exceto o Correio da Manhã, a Última Hora e, de quando em vez, o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo — faziam ouvidos de mercador à evidência que se acumulava. Quando tratava do assunto era para negar a evidência e acusar-nos

de cumplicidade com manobras comunistas, destinadas a desmoralizar o governo do “austero e inatacável” marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. O Correio da Manhã tornou-se, nos meses que se seguiram ao movimento de 1º de abril, a trincheira gloriosa das liberdades individuais e políticas dos brasileiros. Fora violentamente contrário ao Sr. João Goulart, mas assim que foi publicado o Ato Institucional, sequência jurídica do movimento que derrubara o Presidente da República, percebeu que o arbítrio e a prepotência eram por ele legitimados.

A consciência legalista do velho órgão liberal reafirmou-se. O tom dos editoriais passou da aprovação à crítica e, logo em seguida, à oposição firme. A liberdade poderia ser violentada

no Brasil. Mas não o seria com a cobertura de seu silêncio. Considero um verdadeiro milagre a posição assumida e muito tempo mantida, pela proprietária do Correio da Manhã, Niomar Moniz Sodré Bittencourt. Tinha ela diversos amigos entre os ministros escolhidos pelo marechal Castelo

Branco. Seria lógico que a influência deles se fizesse sentir sobre o pensamento do jornal, de tradições conservadoras, que se deparava com um governo caracteristicamente conservador.

O fato de, tomada a primeira decisão de se opor ao clima de progressiva opressão política, não. ter havido desvios ou contemplações de ordem pessoal em sua linha de ataque é, realmente, um fenômeno único nas tradições personalísticas da imprensa brasileira. Os serviços que a luta de

peito aberto sustentada pelo Correio da Manhã prestaram ao que restava de instituições democráticas e de garantias constitucionais no Brasil, só poderão ser avaliados corretamente quando os arquivos dos governantes atuais forem estudados pelos pesquisadores do turvo momento histórico que vivemos.


O governo do Marechal Castelo Branco fez, muito cedo, uma opção básica. Resolveu conservar um simulacro de democracia de preferência a enfrentar as dificuldades internacionais que lhe causaria a declaração de uma ditadura aberta. Seguindo esta linha de pensamento para uso no exterior, optou pela preservação da liberdade de imprensa, que é a mais evidente em uma democracia. Os jornais de oposição passaram a servir-lhe de álibi internacional e de atestado de

bom comportamento democrático perante o mundo. Este atestado era comprado na bacia das almas. Em um País de mais de quarenta milhões de analfabetos, onde o rádio e a televisão são censurados severamente, a oposição de dois jornais que, juntos, têm uma tiragem de menos de trezentos e cinquenta mil exemplares, não representava perigo maior. Tínhamos, durante os meses em que clamávamos no deserto, nítida consciência de que nossa luta servia de escudo internacional ao regime Castelo Branco. Mas era também entranhada a certeza de que das denúncias que fazíamos, do combate que diariamente travávamos, dependia não apenas a reconquista das instituições jurídicas e constitucionais como — o que nos pesava no sono com pungência ainda maior — as vidas de multidões de presos políticos, lançados sem defesa e, frequentemente, sem que de seu paradeiro ninguém soubesse, nos cárceres do governo.

A defesa dos direitos inalienáveis do homem é um ideal pelo qual qualquer sacrifício deve ser feito. Mas a capacidade humana de abstração é limitada. Liberdade e Direito

não têm a cara arrebentada pelos cassetetes da polícia. Não têm nome, mulher, filhos e endereço. Púnhamos o zelo na defesa de nossos ideais abstratos expondo casos concretos, de gente com ficha e lugar de nascimento. E carregávamos para casa, para os exaustos fins de noite que se sucediam ao trabalho da redação, o peso daquelas vidas que, sem que as conhecêssemos, de nós em parte dependiam.

O horror desgasta a imaginação. Existe um ponto de saturação além do qual qualquer pessoa, em uma reação de autodefesa, recusa-se a aceitar a convivência diária com a bestialidade de seu semelhante. O crime individualizado choca e revolta. O crime coletivo, praticado repetida e interminavelmente, em uma cadeia contínua de carnes rasgadas e de dor, acaba por vencer esta revolta e trazer um entorpecimento à consciência dos que o conhecem. Imaginamos o assassinato. Não conseguimos imaginar o genocídio. Em agosto de 1964 estávamos alcançando este terrível ponto de insensibilidade. Tratávamos as denúncias de torturas com um certo automatismo de rotina. Eram tantas as descrições, tão pavorosos os sofrimentos que arrolavam, que não nos conseguiam mais indignar. A reação contra esta anestesia pelo horrível veio ao fim

do mês, em uma noite de trabalho normal. Estávamos à volta da mesa de reuniões dos editorialistas, decidindo sobre que assuntos opinaríamos no dia seguinte, quando um servente

trouxe carta de um estudante angolano, encarcerado no Presídio Naval da Ilha das Cobras pelo crime de, amparado pelo chão livre do Brasil, procurar lutar pela independência de

sua terra. Contava José Lima de Azevedo o que sofrera nas mãos dos inquisidores do CENIMAR e dos investigadores da PIDE, polícia política de Salazar, a quem as autoridades

brasileiras haviam “gentilmente” permitido que o interrogassem. Sua prisão era ilegal e Lima Azevedo estava sofrendo da vista em virtude do sabão em pó que lhe atiraram nos olhos.

O assunto foi molemente proposto como tema do editorial principal. Alguém observou que os leitores já estavam cansados de relatos de torturas, talvez fosse melhor outro assunto.

Pesou sobre nós um silêncio denso. Percebemos que a colocação em palavras diretas do que todos inconscientemente sentiam nos salvara da insensibilidade. Cansar-nos era o que de melhor os torturadores poderiam desejar. Jogavam, precisamente, uma cartada dupla — a dificuldade que sempre existe em provar o flagelamento de presos políticos e a quase impossibilidade de homens normais, entregues a seus afazeres de rotina, acreditarem por muito tempo que

outros homens incluam, em sua também rotineira vida diária, a tortura de seus indefesos prisioneiros.

 A partir daquele instante a grande campanha contra as torturas estava consolidada. Todos os recursos foram concentrados na obtenção de informações, em sua triagem e confirmação e na exposição dramática do imenso painel de bestialidade que cobria o Brasil inteiro. O esforço de informação que desenvolvemos em setembro e outubro de 1964 conseguiu, provisoriamente, paralisar o emprego de torturas nos interrogatórios políticos. Em Recife os presos foram transferidos para prisões civis. Embora esta transferência os tenha privado das condições

de encarceramento mais higiênicas que em geral prevalecem nos quartéis, livrou-os das garras dos torturadores mais fanáticos, como o tenente coronel Darcy Villocq Viana e os

especialistas em eletrochoques a mando dos coronéis Hélio Ibiapina e Antônio Bandeira. O mais violento torturador civil de Pernambuco, o delegado auxiliar Álvaro Costa Lima, não mais ousou tocar nos presos, pois o escândalo nacional levantado em torno de suas atividades envergonhou até o mais empedernido revolucionário de abril. No Rio de Janeiro, entretanto o sucesso foi menor. Conseguimos despertar a opinião pública para os atentados cometidos pela polícia do Sr. Carlos Lacerda. Apontamos ao nojo de seus semelhantes os chefes, SS Gustavo Borges e Cecil Borer e alguns de seus instrumentos, como Sérgio Alex Toledo, Solimar, Boneschi, e o tenente da Marinha Darci Benedito. Mas as torturas não cessaram. Ainda hoje são empregadas pelo DOPS, apesar de empossado um governador que em campanha prometeu acabar com as torturas.

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