A vellhice sobre os ombros

A vellhice sobre os ombros

Quando os ombros doem, a velhice começa

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 Eu já estive no umbigo do mundo. E não era o meu. Foi em Delfos, na Grécia. Na época, eu acreditava na juventude eterna e não fazia cálculos de aposentadoria. Tanto que diante do oráculo da antiguidade não encontrei o que perguntar. A velhice me parecia uma miragem que só se tornava realidade com os outros. Jogava futebol uma tarde inteira sem parar e ria de quem me falava em aquecimento, alongamento e outras coisas assim destinadas aos “fracos”. Podia beber à vontade e não tinha ressaca. Colesterol era uma palavra que eu sempre precisava buscar no dicionário.

      Tudo mudou. Há muito que não bebo álcool. Se tomar uma taça de vinho, levo dois dias para me recuperar. Larguei o futebol depois de me lesionar três vezes sem ninguém me tocar. Já tenho cadastro na fisioterapia. Nunca tive medo de avião cair, mas hoje, se a viagem for longa, me socorro de dramin ou algo mais para não temer um mal-estar. Antes, bastava um livro de Simenon comprado na livraria do aeroporto. Chego a ter três exemplares do mesmo título. Leio, esqueço, releio. Não posso ver aplicativos de simulação de aposentadoria que paro tudo para me servir. Virei quase especialista em plano de previdência privada. Mais um pouco e posso fazer palestras sobre PGBL, VGBL, tributação progressiva ou regressiva, renda vitalícia, expectativa de vida, seguro de vida em vida.

Segundo Charles Jencks, ou de acordo com uma leitura do que ele teria dito, a pós-modernidade nasceu em Saint Louis, Missouri, Estados Unidos, em 15 de julho de 1972, às 15h32min, quando o Pruitt-Igoe, símbolo arquitetônico da modernidade, foi implodido. Entrei definitivamente na pré-terceira idade na sexta-feira, 19 de abril, entre 11 horas da manhã e uma da tarde. Durante esse intervalo de tempo, segurei um microfone para falar. Quando terminou o programa, senti meus dois ombros destruídos. Nunca pensei que levantamento de microfone pudesse ser tão dolorido.

Não me queixo. Constato. Antes, alguém com 60 anos me parecia um ancião. Hoje, um jovem. De 70 anos, ainda jovem. Empurrei a velhice para os 80. Mas ela me espreita na esquina dos 57 para 58. Há quem diga que me preocupo demais com isso. Pode ser. Culpa do Paulo Guedes e do microfone. Até a semana passada eu nem sabia que tinha ombros. Eles suportavam o mundo. Agora, são ruínas de um majestoso edifício em desconstrução.

 

Estou no meio do mundo

Estou sozinho no fundo

Vendo a margem do rio

Percebo luz na correnteza

Figuro no mapa-múndi

Cavalgo na escuridão

Conto estrelas ao amanhecer

Enquanto pássaros renascem

Para ver o sol na lâmina d’água

E imaginar a aposentadoria.

 


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