Aos meus amigos do Beco da Rivadávia

Aos meus amigos do Beco da Rivadávia

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Semana farroupilha me fez pensar nos negros sacrificados em Porongos.

Uma série de associações se desencadeia.

Penso em meu amigo, o historiador Décio Freitas, que me instigava a exercer meu ofício de pesquisador.

Penso, sobretudo, em meus amigos negros do Beco da Rivadávia, em Santana do Livramento.

Os guris negros me introduziram na vida urbana.

Em Palomas, meus primeiros amigos foram Maninho e Dineco, filhos do Seu Laci, negro que comandava os ferroviários do lugar. Saiam muito cedo para trabalhar em cima de uma plataforma sobre rodas.

As pessoas diziam:

– Lá vão os tucos no trole.

No Beco da Rivadávia, quase uma ilha no centro da cidade, onde desaguamos pouco depois de deixar Palomas, meus amigos negros – havia também um Maninho, que morava num casabre – eram muito pobres e muitos generosos. Eles me levaram ao meu primeiro contato com o carnaval: um ensaio do bloco Bafo da Onça.

A eles, esses pequenos heróis que perdi de vista, mas que mantenho no coração, dedico, todo ano,  um texto de meu livro História regional da infâmia, o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras.

 

Uma barca para o Rio de Janeiro

 

     Pode-se imaginar com nostalgia cenas marítimas do passado. Correntes disputam as verdades da história local. Uma delas diz que os farrapos não entregaram aos imperiais os negros que com eles lutaram sob promessa de liberdade. Outra garante que houve um acordo de entrega e que o Barão de Caxias libertou esses negros aqui no Rio Grande mesmo, incorporando-os ao exército. Em 25 de agosto de 1845, porém, chegaram ao Rio de Janeiro 77 negros e 19 inválidos provenientes do Rio Grande, conforme noticiaram o Diário do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio. Viajaram numa barca chamada Triumpho da Inveja. Esses recortes de jornal foram agora localizados por Fernando Quadrado Leite. Quem poderia invejá-los? Que teriam sentido ao desembarcar? Houve fugas antes e depois da partida. Foi preciso amarrá-los antes do embarque.

Em 2 de março de 1845, finda a guerra, David Canabarro escreveu a Caxias informando sobre a entrega dos negros: “Por Israel Antunes da Porciúncula faço acompanhar até a presença de V. Ex. noventa libertos, com seus armamentos, para terem o destino por V. Ex. indicado”. Em 4 de março de 1845, José Santos Pereira, comandante da Segunda Divisão, à margem do rio Santa Maria, passou recibo a Canabarro: “O Senhor Barão de Caxias (...) ordenou-me quando marchou deste campo para Bagé, que abrisse os ofícios que viessem para ele, o que fiz com o que V.Sa. lhe dirigiu em data de 2 do corrente (...) fico de posse dos libertos que lhe remeteu”.

Em 5 de março de 1845, Caxias escreveu ao ministro da Guerra, Jerônimo Coelho: “Os escravos que eles ainda conservavam armados, foram entregues com suas armas, e seu número já não excede a 120 (...) Os escravos mandei adir aos corpos de Cavalaria de Linha, até seguirem para essa Corte na forma das ordens que recebi”. Recebeu e cumpriu. A questão dos escravos fora o ponto mais difícil para alcançar a paz. Em 7 de Maio de 1845, o ministro cobrou de Caxias o envio dos negros: “Sua Majestade o Imperador mandando renovar a ordem a Vossa Excelência designada na última parte do Aviso reservado do 1º de abril, determina (...) que Vossa Excelência na ocasião de remeter para esta Corte os escravos entregues pelos rebeldes, e quaisquer outros anteriormente prisioneiros, os faça acompanhar de relações nominais, tanto agora deles, como dos senhores, a quem pertencem”. Em 1º de agosto de 1845, o ministro da Marinha, Cavalcanti de Albuquerque, especificou: “Deverão ser remetidos para esta Corte tanto os escravos que forem aí pagos como os que devem ser aqui avaliados, a fim de se lhes dar o conveniente destino” (Avisos de Guerra, AHRGS. Bl. 049).

Em 5 de setembro de 1845, Albuquerque enviou correspondência a Caxias alertando que algo não estava batendo: “Havendo o Brigadeiro graduado Luis Manoel de Jesus remetido uma relação de oitenta e oito libertos, que por ordem de Vossa Excelência deviam seguir para esta Corte, e não tendo aqui chegado os que constam da relação junta assinada pelo Oficial Maior desta Secretaria de Estado; assim o comunico a Vossa Excelência (...) a fim de dar as convenientes providências a tal respeito”. Triumpho da Inveja mostra que a cobrança surtiu efeito. Em maio de 1848, uma comissão da Câmara dos Deputados estava reunida para dar destino aos negros “farrapos”.

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