Ar da noite

Ar da noite

Sobre homens e épocas

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      Há muito que ele se prometia uma festa capaz de espantar o tédio e as frustrações da política. Gastou duas tardes escolhendo os vinhos. Prepararam a sala como se da decoração dependesse o futuro de uma geração. A vida se tornara sufocante depois da partida de Ellen para o exterior. Ela decidira viver os seus últimos anos em Portugal. Não via mais clima para permanecer em casa. De nada adiantou explicar que uma coisa é estar de passagem num país europeu e bem outra é instalar-se para morar.

– Eles ficarão felizes com meu dinheiro – foi a resposta dela.

      Contou com a ajuda de Margot, a filha mais velha, estudante de Relações Internacionais, para organizar a recepção. O cardápio misturava pratos bem brasileiros, que ele adorava, com algumas iguarias sofisticadas no melhor estilo gourmetizado em “leito de rúculas”. Vieram 16 pessoas. Duas simplesmente não apareceram embora tivessem confirmado presença. Não deu bola. Sabia que Aldo e Maria teriam a melhor desculpa do mundo na manhã seguinte e a pior sensação de ter perdido algo inesquecível. A ideia era privilegiar a conversa acima de tudo. Por isso a música deveria ser suave e de fundo. Para começo de conversa, “the best of John Coltrane”.

– Isso não vai dar certo – sentenciou Carla, a filha mais nova.

      Estudante de cinema, ela pensava tudo em termos de composição de cena. O seu argumento era simples: haveria divisão política e choque. Ninguém anda com paciência para contemporizar. A noite estava incrivelmente fresca para a estação. Ao cair da tarde, havia barras alaranjadas no canto mais distante do céu. Não foi preciso usar o ar condicionado. Bastou abrir as janelas, o que sempre torna mais agradável, salvo para os que preferem viver em câmeras frigoríficas, um ambiente.

      As coisas aconteceram conforme o previsto. Por quem? Primeiro chegaram os que sairiam mais cedo para não dormir tarde embora fossem acordar de madrugada com insônia para pensar nos problemas que imaginavam dominados. Por último, apareceram os que esperavam mais do final que do começo do encontro, essa ilusão de juventude de que o melhor sempre acontece depois da meia-noite ou depois da perda do controle das ações pelo Superego. O roteiro parecia perfeito. Falou-se de cinema, de viagens, de vinhos, de futebol e de literatura, com destaque para o último livro de Paul Auster, que ninguém havia lido inteiro por ter novecentas páginas.

      Talvez ninguém simplesmente houvesse lido uma só página.

      O anfitrião lembrou-se de uma passagem de “Suave é a noite”. Ainda gostava de Scott Fitzgerald embora tardiamente preferisse Hemingway.

– A senhora McKisco, nome que acho horroroso, disse que o marido estava escrevendo o seu primeiro romance, inspirado em “Ulisses”.

– Que perigo! – exclamou Vlado.

– Ela explicou assim. Falou: “Só que em vez de abranger vinte e quatro horas, meu marido optou por cem anos”.

– Cem anos! – espantou-se Raul.

– É muito tempo – confirmou Marina.

– Como lembra dessa frase literalmente? – perguntou Vlado.

– Reli hoje para contar a vocês.

– Ah, bem que eu desconfiei!

– Ela ainda contou: “Ele apanha um velho e decadente aristocrata francês e mostra o contraste com a era mecânica”.

– A era mecânica! – suspirou Anita.

      Ficaram alguns minutos em silêncio certamente pensando em Ulisses, na senhora McKisco, em cem anos de narrativa e, claro, na era mecânica.

      Foi pouco depois disso que estourou a discussão entre Vlado e Antônio. Pela janela se viam as luzes distantes. Talvez fizessem os mais nostálgicos pensarem em pirilampos e na infância. Os mais pragmáticos ou medicados contra a ansiedade limitaram-se a comentários menos poéticos:

– Não seria melhor ligar o ar?

      Vlado e Antônio não se pouparam. Como nenhum dos dois estava suficientemente informado sobre o assunto, a coisa pegou fogo. O tema era a reforma da Previdência. Aposentadoria por repartição ou por capitalização. Os números e argumentos citados ignoravam a realidade, o que tornava o debate ainda mais passional e furioso. Tem-se mais certeza de algo na medida em que se ignora o principal. O que seria o principal? Vlado usa uma técnica muito particular nas discussões. Sempre que alguém rejeita o seu argumento, ele o repete como se o outro não tivesse ouvido.

      Carla tentou salvar a lavoura falando de “Roma”, o filme. Não teve êxito. Era jovem demais para levar bom senso aos mais velhos. Margot apressou a sobremesa. Houve consenso. Exceto por Vlado e Antônio, que recusaram qualquer uma das alternativas, inclusive uma chamada canollo.

      Rapidamente a sala se esvaziou. Antônio ainda perguntou:

– Ninguém foi pego transando no banheiro?

– Que é isso, pai? Ficou louco? – espantou-se Carla.

      Antônio debruçou-se na janela e amanheceu observando os pirilampos.


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