As mortes de João Alberto

As mortes de João Alberto

Não param as tentativas de relativização

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      Yes, nós temos nosso George Floyd. Ele se chamava João Alberto Freitas e foi morto por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, na véspera do dia da Consciência Negra. Foi espancado até morrer por ter discutido com uma caixa da loja e por ter desferido um soco num dos seus algozes. Na verdade, morreu por ser negro. As imagens do assassinato são atrozes. O delegado plantonista ressaltou que os agressores subiram no corpo do homem e “colocaram perna no pescoço ou no tórax” dele. Ele foi asfixiado durante quatro minutos diante de pelo menos 15 pessoas. E agora? Haverá justiça de fato? Ou tudo será relativizado?

      O caso Floyd provocou manifestações no mundo inteiro. Sacudiu os Estados Unidos. Desencadeou uma onde contra o racismo sempre presente. A morte de João Alberto mexe com o Brasil. As reações tomaram as ruas. Em 2017, dados do relatório Desenvolvimento Humano para Além das Médias, divulgado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostravam Porto Alegre como a capital brasileira com maior desigualdade entre negros e brancos no Brasil. A pior capital brasileira para um negro viver. Pelo jeito, a melhor para morrer. A população negra de Porto Alegre tinha IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) de 0,705, contra 0,833 dos brancos, um fosso de 18,2%, o maior do país, onde a diferença média é de 14,42%. O racismo, que me conste, quase nunca é tema das campanhas eleitorais gaúchas.

      A mulher de João Freitas disse que o marido chegou a pedir-lhe ajuda. Os agressores foram presos. Carrefour publicou nota lamentado o ocorrido e prometendo romper contrato com a empresa que lhe prestava serviço de segurança. A morte de João Alberto faz pensar neste Brasil onde sete em cada dez pessoas que moram em residência com algum grau de inadequação são pretas ou pardas. Herança maldita de uma conta não paga com os descendentes dos escravizados. Joaquim Nabuco pintou o horror como ele foi e custa a mudar o seu legado. Vale lembrar: “A escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha ao que se obrigou certo número de deveres definidos para com o locatário. É a posse, o domínio, o sequestro de um homem – corpo, inteligência, forças, movimentos, atividade – e só acaba com a morte. Como se há de definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou o que este não pode, contra o senhor? Em regra, o senhor pode tudo”.

Graças ao braço negro, o branco  construiu riqueza e jamais pagou por ela: “Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”. João Freitas é mais uma vítima dessa longa tradição que tem suas raízes no escravismo mais longo do mundo. Vamos esquecer? Em Porto Alegre, vidas negras realmente importam?

 João Alberto tinha antecedentes policiais por violência doméstica. Nada, porém, vai alterar as imagens da sua morte. O soco, algum insulto, nada justifica a reação frenética de violência  contra ele. O fato de ser negro certamente acionou algum mecanismo no imaginário dos seguranças. A extrema direita tenta dequalificar o morto para reafirmar que não existe racismo no Brasil. Essa estratégia vem desde os tempos da escravidão. O negro era sempre o culpado. Uma tradição.

 


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