Caderno de notas

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Fragmentos de uma vida cultural

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Quinquilharias

    Foi aí que ele disse:
“– Imagino o que você quiser.
– Deixe de tolice. Não quer pagar bebida para uma senhora?
– Vamos tomar outros dois martínis.
– Como os primeiros?
– Estavam ótimos.”
    Então Brett se levantou e saiu.
– Opa! Que é isso? Essa não é sequência correta da conversa quase ao final de “O sol também se levanta”, do intrépido Hemingway.
– Eu sei. Mas sempre tenho vontade de escrever outros finais.
– Para quê?
– Quem sabe para tentar salvar o autor do seu destino.
*


Telefonistas


Séries longas acabam por ter defeitos de velhas novelas.: enchem linguiça. Como precisa ter muita ação, quando os personagens escapam de um incêndio já vem uma enchente. “As telefonistas”, da Netflix, com quatro temporadas, é um festival de reviravoltas, com uma vilã anciã capaz de por fogo em igreja durante casamente do filho para chegar aos seus fins. Uma cândida operadora, decepcionada com a pouca intensidade do marido, recebe uma sugestão de leitura: “O amante de lady Chatterley”, de D. H. Lawrence. Para quem possa não saber, esse livro, publicado em 1928, em Florença, só foi permitido na Inglaterra em 1960, depois de importantes adaptações para não chocar tanto. Para usar uma expressão conhecida, é fogo no parquinho. E no roteiro.
*
Profusão
Quando o menino chegou na estação
A tarde estava coalhada de tédio
A luz que brilhava nos trilhos
Exibia o sol em muitos pedaços
Uma árvore fria deitava sombras
Outra, dormia a sesta vegetal
Na área o busto do comendador
Contemplava viagens adiadas.
Só as cigarras sabiam o que dizer.
*
Mal ditos de novo

    Há os que criticam por inveja. Piores, muito piores, são os que elogiam por inveja. São elogios que soam melhor como críticas azedas.
*
    Mitômano é um cara que jura nunca mentir. E acredita na mentira que acaba de contar. Pura (pós)verdade. Da mesma forma, um sujeito que, em público, sempre diz que é tímido e de poucas palavras, fala demais. Resta lembrar: já que Lacan não resolve, vida que segue.
*
Muito além da liberdade

    Gosto tanto desse título que, em 1991, escrevi e publiquei um pequeno livro (Artes & Ofícios) para tê-lo na capa. Termina assim: “A liquidação do Partido Comunista da URSS é apenas mais um passo na movimentada cena deste fim de século em que qualquer definição do tipo ‘fim da história’ é uma teleologia. A pós-modernidade talvez já tenha terminado e nunca tenha sido original. Não importa. A permanência não a encantava. É categoria moderna. O novo lance do Velho. Qual será, derrubado o socialismo real, de péssima lembrança, o futuro do capitalismo? O vendaval recém começou. Mas é melhor não sonhar com revoluções à moda antiga. O amanhã pertence ao imprevisível”. O amanhã é hoje. A China montou um laboratório para estudar e aprofundar o “socialismo de mercado”. A minha previsão estava certa: imprevisível. Eu tinha acabado de voltar de um tour pela Alemanha, inclusive a do Leste. Na época, eu gostava de viagens longas, polêmicas e palavras difíceis como “teleológico”. Hoje, coleciono memórias, poemas e  pílulas simples como esta: ideologia é o nome do pensamento alheio.
*
Flores do mal
Como é belo ao se erguer fresquinho o sol nascente
Lançando-nos o seu bom-dia como uma explosão!
– Feliz aquele que pode com toda a sua paixão
Saudar, mais glorioso do que um sonho, o sol poente.
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    Morreu de câncer o jornalista e escritor José Antônio Severo, que passou pela Caldas Júnior. Aos 79 anos, estava na ativa. O seu último trabalho, sobre a independência do Brasil, ainda será divulgado. Alcy Cheuiche diz que, entre coisa boa feita por Severo, não se deve esquecer o grande livro “General Osório e seu tempo”. Devo a ele a publicação do meu livro “Getúlio” pela Record. O corpo será enterrado hoje em Caçapava do Sul. Grande perda.

 


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