Camus e os jornalistas em tempo de guerra

Camus e os jornalistas em tempo de guerra

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Epifania

 

Ele chegou ao topo do morro e confessou: “Não foi fácil”. Olhou para baixo e pensou que nada teria valido à pena sem a força que o movia: a busca pela verdade. Não sentia vergonha de cometer dois clichês em tão poucos segundos. Sim, ele acreditava na verdade. Não, não pensava que fosse possível tudo elucidar. Mas achava que pensar e conhecer eram formas de produzir desvelamento. Gostava desse termo e atrevia-se a reler traduções de Heidegger para encontrá-lo. Na verdade, não apreciava muito o filósofo alemão. E não só pela sua colaboração com o nazismo. Não se se interessava por boa parte do que ele dizia em páginas sem fim.

Exceto em “A questão da técnica”.

Olhou o imenso coqueiral aos seus pés e sentiu-se à beira do abismo. Permitiu-se a lembrar que a história da humanidade era um pouco a oposição entre a história de verdades impostas e não demonstradas e uma tendência para a desistência. Da verdade indiscutível à inexistência de verdades. Firmou os pés no chão, deixou-se acariciar pelo vento, sonhou, como o menino que nunca deixaria de ser por incapacidade de ser outra coisa, em voar. Não, não pretendia morrer. Queria realmente voar. Via-se planando sobre o mar.

Uma nuvem cobriu o sol. De repente, estava pensando em Albert Camus. Sempre preferira Camus a Sartre. Tirou do bolso um pedaço de papel bastante amarelado. Um recorte do jornal. Um texto de Camus. Leu para os pássaros inquietos como se eles estivessem interessados. Alguns, azulados, levantaram voo durante a leitura: “A lucidez pressupõe a resistência aos movimentos do ódio e ao culto da fatalidade. No mundo de nossa experiência, é certo que tudo pode ser evitado. A própria guerra, que é um fenômeno humano, pode ser a todo momento evitada ou interrompida por meios humanos.  Basta conhecer a história dos últimos anos da política europeia para nos convencermos de que a guerra, seja ela qual for, tem causas óbvias. Essa visão clara das coisas exclui o ódio cego e o desespero que deixa estar”.

O futuro prêmio Nobel merecia ser lido mesmo sem ouvintes: “Um jornalista livre, em 1939, não se desespera e luta pelo que acredita ser verdadeiro como se a sua ação pudesse influenciar o curso dos acontecimentos. Não publica nada que possa incitar ao ódio ou provocar o desespero. Tudo isso está em seu poder”. Contemplou o asfalto entre a areia da praia e a vegetação luxuriante do morro e flutuou por alguns segundos entre a incerteza e a convicção. De que mesmo? De que as palavras faziam sentido, indicavam caminhos, serviam aos homens.

Leu Camus com vigor e voz clara para um lagarto surgido do nada: “Nenhuma das limitações do mundo leva um espírito um pouco limpo a aceitar ser desonesto. Ora, por menos que conheçamos o mecanismo das informações, é fácil nos assegurarmos da autenticidade de uma notícia. É a isso que um jornalista livre deve dedicar a sua atenção. Pois, se ele não pode dizer o que pensa, pode não dizer o que não pensa ou o que acredita ser falso. E é assim que se mede um jornal livre: tanto pelo que diz como pelo que não diz. Essa liberdade bem negativa será, de longe, a mais importante de todas, se soubermos mantê-la”.

Parou, encheu os pulmões de ar, continuou num sussurro, a voz rascante, ácida. O lagarto se afastou com um gesto rápido de fuga: “Pois ela prepara o advento da verdadeira liberdade. Em consequência disso, um jornal independente dá a fonte de suas informações, ajuda o público a avaliá-las, repudia as cascatas, suprime as injúrias, compensa, em comentários, a uniformização das informações e, em resumo, serve à verdade na medida humana de suas forças”. Parou.

Sempre voltava a Camus. Uma vela colorida assomou no oceano. Ele se encheu de energia e quase gritou retomando a leitura de seu jornal amarrotado: “Chegamos, assim, à ironia. Podemos estabelecer que, em princípio, um espírito que tem gosto e os meios para impor limitações é impermeável à ironia. Não vemos Hitler, para tomar apenas um exemplo entre outros, utilizar a ironia socrática. Conclui-se que a ironia permanece como uma arma sem precedentes contra os poderosos demais. Ela completa a recusa na medida em que permite não rejeitar o que é falso, mas muitas vezes dizer o que é verdadeiro. Um jornalista livre, em 1939, não tem muitas ilusões sobre a inteligência daqueles que o oprimem. Ele é pessimista no que diz respeito ao homem”. Tossiu.

Ventava forte. Um vento áspero para outubro. Não havia mais pássaros nem lagartos. A sua pele estava arrepiada. Encontrou forças para um último parágrafo: “É preciso reconhecer, porém, que há obstáculos desencorajadores: a constância na tolice, a covardia organizada, a ininteligência agressiva - e por aí vai. Eis o grande obstáculo sobre o qual é preciso triunfar. A obstinação é aqui uma virtude cardeal. Por um paradoxo curioso, porém óbvio, ela se põe a serviço da objetividade e da tolerância”. Fechou os olhos. Dobrou o jornal. Enfiou o papel no bolso esquerdo traseira da calça. Voou.

 

 

 

 

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