Capa do processo

Capa do processo

Julga-se pelo nome do acusado?

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      Nas muitas entrevistas que fazemos no Esfera Pública, na Rádio Guaíba, com o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, ele sempre usa uma imagem para salientar o quanto preza a imparcialidade do julgador: “Processo não tem capa”. Uma maneira de dizer que se deve julgar a todos da mesma maneira, sem o olhar o nome. Outro dia, falei dessa metáfora para Roberto DaMatta, o maior antropólogo brasileiro em atividade, que pensou o Brasil com originalidade a partir de noções como o “você sabe com quem está falando?” Calejado, DaMatta aplaudiu o ideal, mas destacou que sempre olhamos a capa, o rosto, a biografia. Certas culturas, mais. Outras, menos. Somos seres humanos carregados de subjetividade e de viés.

      Quando Jair Bolsonaro saía sem máscara e provocava aglomerações, estava reafirmando o “você sabe com que está falando?” Era como se dissesse: “Sou o presidente da República, pô, não preciso fazer como os outros”. O mesmo pode ser dito em relação às escapadas do técnico Renato Portaluppi à praia, no Rio de Janeiro. Depois de clamar, no começo da pandemia, pela suspensão dos campeonatos e de ficar de quarentena no Rio de Janeiro por fazer parte de grupo de risco, ele se esbaldou nas areias da Zona Sul carioca. Parecia dizer que era diferente, especial, sem compromisso com as regras válidas para os demais. Muitos trataram de perdoá-lo por ser quem ele é. Um ídolo.

      A pandemia exige que todos se vejam como iguais e sigam as mesmas normas de proteção. O infectado pode infectar outros. Como convencer uma sociedade baseada na distinção – tão flagrante nos carteiraços aos fiscais de trânsito como o do desembargador desmascarado de Santos – a comportar-se igualitariamente? Houve um caso quase folclórico não faz muito, o da mulher que defendeu o marido, cobrado por um fiscal, com este coice: “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”. O diploma como capa do processo. Um deputado fez grandes festas no seu luxuoso apartamento em São Paulo durante o período de restrições. Não se sentia igual aos demais. Via-se como alguém dispensado de seguir barreiras impostas à coletividade. Estava acostumado a ser tratado com isenções.

      Em meu livro “A memória e o guardião: em comunicação com o presidente da República, relação, influência, reciprocidade e conspiração no governo João Goulart” (Civilização Brasileira), mostro o quanto cada um, especialmente os mais poderosos, incluindo ex-presidentes da República, sentiam-se autorizados a pedir favores ao chefe da nação. A capa da correspondência, o nome estampado nos envelopes ou o timbre nos cabeçalhos, era um passaporte diplomático a ser considerado na hora das decisões. O problema é que o vírus não respeita a capa dos processos, das biografias e dos currículos. Entre Marco Aurélio Mello e Roberto DaMatta, fico com o ideal do magistrado e com o ceticismo do antropólogo. O Brasil muda pouco quanto ao seu arraigado sentimento de distinção. Diante do vírus, a pessoa pergunta:

– Você sabe com quem está falando?


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