Celso Furtado e Florestan Fernandes

Celso Furtado e Florestan Fernandes

Mestres fariam cem anos em julho de 2020

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      Eu era um jovem curioso. Fui à igreja da Madeleine espiar o velório de Marlene Dietrich. Fui à Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, numa aula de Ignacy Sachs, ouvir um mito: Celso Furtado. Um dia, zanzando na Pauliceia Desvairada, segui um amigo para escutar Florestan Fernandes falar sobre racismo no Brasil. O economista Celso Furtado (Pombal, 26 de julho de 1920 — Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2004) e o sociólogo Florestan Fernandes (São Paulo, 22 de julho de 1920 – São Paulo, 10 de agosto de 1995) fariam cem anos neste mês de julho e, se vivos fossem, ajudariam a pensar este Brasil confuso.

      Mortos, ajudam com suas obras incontornáveis. Em busca de uma formação decente, li, reli e releio “A integração do negro na sociedade de classes”, de Florestan, e “Formação econômica do Brasil”, de Furtado. Eles fazem parte de uma última safra de pensadores do Brasil. Queriam compreender o país como totalidade e transformá-lo. Florestan Fernandes era marxista. Celso Furtado, um intelectual de forte sensibilidade social. Como nunca fui marxista, sempre me impressionei mais com as ideias de Furtado, que, como estudioso do governo João Goulart, volta e meia encontro em documentação inédita. Quando foi que paramos de produzir grandes intelectuais como eles? Secou a fonte ou a própria noção de intelectual é que se alterou?

      Celso Furtado concebeu o Plano Trienal para o governo João Goulart. Em meu livro “A memória e o guardião” (Civilização Brasileira, 2020), cujo lançamento presencial o coronavírus derrubou, cito um bilhete do economista para o presidente da República: “Presidente, modifiquei o texto dando ênfase ao problema das reformas de base e ligando o planejamento a essas reformas e à melhoria das condições de vida do povo. A linguagem é menos técnica, mas não perde em precisão. Algumas frases foram adaptadas do outro texto, que segue conjuntamente, conforme sua solicitação”. A importância de Furtado como pilar do governo Jango aparece claramente nesse simples recado.

      Florestan Fernandes foi do básico, “os africanos, transplantados como escravos para a América, viram a sua vida e o seu destino associar-se a um terrível sistema de exploração do homem pelo homem, em que não contavam senão como e enquanto instrumento de trabalho e capital”, ao complexo, “não bastava alfabetizar o negro ou prepará-lo, intelectualmente, para certos ofícios. Impunha-se prepará-lo para todas as formas sociais de vida organizada, essenciais na sua competição com os brancos por trabalho, por prestígio e por segurança e garantir-lhe, além e acima disso, aproveitamento regular de suas aptidões e autonomia para pôr em prática os seus desígnios”.

      No país do desembargador que dá carteiraço em francês e, quando questionado por colegas mulheres, vê os processos arquivados misteriosamente, as utopias se Celso Furtado e Florestan Fernandes são letras mortas. Ainda não enterramos nosso passado machista, escravista e elitista. As reformas de base também não se consumaram. O Brasil continua a ser um projeto incompleto de modernização e igualdade.


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