Cinema e poesia como imaginário

Cinema e poesia como imaginário

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Lion, enfim um grande filme

Já fiz muita coisa nesta vida. Sou metido, intrometido e irrequieto. Polêmico e polemista. Em certo momento destes meus doces 55 anos de idade, cobri festivais de cinema na Europa: Cannes, Berlim e Veneza. Encontrava os críticos mais famosos do Brasil nessas coberturas e discutia com eles. Meus critérios de avaliação eram diferentes. Eles amavam Ken Loach, que eu considerava uma espécie de requentador do naturalismo literário do século XIX, forçando a chantagem emocional para arrancar elogios de espectadores engajados ou lágrimas de pessoas com alta sensibilidade social. Ou seja, um bom panfletário. Nos últimos tempos, mais velho e mais sensível, gostei do Daniel Blake de Loach, que não deixa de chantagear um pouco.

Toda semana eu vou ao cinema. No passado, ia para aprender a mudar o mundo. Eu era papo-cabeça radical. A arte precisava ajudar a fazer a revolução. No meu caso, revolução libertária. Eu era seguidor de um anarquista alemão chamado Max Stirner, inimigo do Estado como guardião do poder. Hoje, vou ao cinema para distrair. Detesto filmes que se atolam na exploração de detalhes sórdidos, perversos, violentos e cruéis. Não saio de cada para ver a história de um pedófilo. Quero histórias sinuosas que alternem o bem e o mal, o bom e o ruim, a tristeza e a felicidade, vitórias e derrotas, triunfos e fracassos, esperanças e desilusões, altos e baixos, como a vida. Sei que não há filme nem romance sem conflito. Mas só o mal não me serve.

Vi, depois de muito tempo, um filme que me agradou do começou ao fim: Lion, de Garth Davis, história de um menino de cinco anos que entra num trem por curiosidade na sua cidade e se vê trancado no vagão numa viagem de 1.600 quilômetros. Vai parar em Calcutá. Passará 25 anos perdido, adotado por australianos, sem contato com a família biológica. Por fim, usando a internet, começará a sua grande jornada de volta para casa. Ele só lembrava o nome da sua cidade. Mas, em função de uma pronúncia errada, o nome não correspondia a qualquer lugar real. O filme, adaptado de uma história real, recorre a truques clássicos da história universal das narrativas. Como Édipo, o menino perdido carrega uma marca no corpo. Uma cicatriz na cabeça produto de um choque bastante trivial e até engraçado. Fruto de uma melancia. As lembranças do jovem adulto se aguçam, à maneira do personagem de Marcel Proust, não quando ele molha sua Madeleine no chá, mas quando vê um prato de jalebis, um doce que ele sonhava comer quando criança.

Críticos encontram defeitos em Lion. Forçaria demais o humano panorâmicas desnecessárias. Seria uma propaganda do Google Earth. Exageraria na pieguice. Não vai nada disso. Vi uma história verdadeira, tocante e sinuosa. Chorei várias vezes. Não me convite. Sou fixado nessa coisa de voltar às origens. Me imaginei perdido com a cabeça cheia de imagens de Palomas sem saber onde isso ficava. Lion é um filme extraordinário. O melhor que eu vi em muitos anos. Dez.

*

Espírito do tempo

 

Assim na América, quando o sol se põe,

Eu penso em Dean Moriarty, eu penso

Em Dean Moriarty e na minha estrada.

Eu penso no velho cais despedaçado

De onde eu partia para colher avencas

Com os olhos rasos de água envenenada.

Eu penso nas ruas do meu passado,

Na velha regando as suas folhagens

E nas nuvens recortando o orvalho,

Cavalos tristes como magras paisagens.

Os morros descortinando-se no vale,

O vale sugando aos poucos meus olhos.

Assim eu ainda penso em Dean

Preso no meu imaginário tean

Lambendo essas memórias ácidas

Recolhendo lembranças flácidas

Eu penso, quando o sol decai

Eu penso naquilo que se esvai,

Montanhas, sentimentos, cartas,

Beijos, tempestades, olhares

Tristes conversas nos bares,

Gatos espreguiçando-se no sofá,

Caminhões levantando poeira vermelha

E um rasgo feito um remendo no céu.

Eu penso em Dean Moriarty,

Em Dean Moriarty,

Eu penso.

Mas o livro já se fechou para sempre.

*

Eu penso em Dean Moriarty

Sob um céu azul granuloso

Feito um algodão que se esboroa

Ao toque de uma mão infantil.

Eu penso em Dean Moriarty

Sob as barras rubras e laranjas

Do anoitecer caindo sobre o piano,

Do crepúsculo ceifando lavouras,

Da mulher brandindo vassouras,

Morcegos de veludo ao escurecer.

Eu penso em Dean Moriarty

Como quem abraça a água doce

Nadando para dentro de si

A passos vastos no verde

Da campanha sagrada, ocre,

Pálida, subitamente arco-íris.

*

Eu penso em Dean Moriarty

Como quem repete uma ladainha,

Terço, coral, voz de coroinha

Numa missa subterrânea e deserta,

Alma taciturna enfim desperta

Para essa libação noturna.

O que eu quero dizer não se diz,

O que digo jamais sei se fiz,

Estive alheio por toda parte,

Molhando na boca essa arte

De sair de dentro de mim,

Para, na América, assim,

Minha, nossa, América,

América do Sul, desse azul,

Me encontrar, por fim

A oeste do meu norte.

*

Eu penso em Dean Moriarty

E tento tirar a mosca da garrafa

Como se a mão fosse uma tarrafa

E a estrada uma pista de kart.

*

Por trás da curva esconde-se a alma.

Por trás da reta esconde-se a calma.

Eu penso em Dean Moriarty.

Quando um último pensamento se apaga.

Apenas a sombra na pista me afaga.

*

Eu penso em Dean Moriarty

Dizendo para o seu pai,

Esse pai jamais encontrado:

Durante muito tempo

Eu me deitei cedo

Para fugir ao medo

Deste nosso caminho.

 

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