Conceição Evaristo na ABL
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O racismo é uma praga que vem de longe e resiste aos combates da razão. A história da humanidade é também a história de gênios limitados e racistas incapazes de ver um palmo adiante da época em que viveram, ainda que outros estivessem denunciando o que eles não enxergavam e as vítimas da infâmia não parassem de provar que eram submetidas à barbárie dos “civilizados”. Kant, cantado em prosa e versa por sua métrica moral, o famoso só faça o que possa ser aceito universalmente como uma norma, pensava assim: “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”. Quem mandou passar a vida dando a volta no quarteirão sem sair para descobrir o mundo concreto?
Kant tinha companhia no preconceito: “O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes”. É dele ainda esta incitação à violência: “Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas”. Sentir vergonha parece pouco. Voltaire era racista. Escreveu numa historieta: “Descendo sobre este montículo de lama e não tendo maiores noções a respeito do homem, como este não tem a respeito dos habitantes de Marte ou de Júpiter, desembarco às margens do oceano, no país da Cafraria, e começo a procurar um homem. Vejo macacos, elefantes e negros. Todos parecem ter algum lampejo de uma razão imperfeita. Uns e outros possuem uma linguagem que não compreendo e todas as suas ações parecem igualmente relacionar-se com um certo fim. Se julgasse as coisas pelo primeiro efeito que me causam, inclinar-me-ia a crer, inicialmente, que de todos esses seres o elefante é o animal racional. Contudo, para nada decidir levianamente, tomo filhotes dessas várias bestas. Examino um filhote de negro de seis meses, um elefantezinho, um macaquinho, um leãozinho, um cachorrinho”.
Hegel, que brilhou tanto mais quanto menos foi entendido, com sua linguagem teratológica, esbaldou-se no racismo: “A principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência [... O negro representa, como já foi dito o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo”.
O talento de Conceição Evaristo brilha em cada um dos seus poemas. Tomara que os “imortais” de hoje sejam capazes de reconhecer a literatura intemporal:
Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.
Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.
Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.