Conto: folhas douradas

Conto: folhas douradas

Uma amizade inesquecível

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    Conheci Michel três meses depois de desembarcar em Paris. O seu nome era tão local que me soava como uma aula na Aliança Francesa.
– Bom dia, eu sou Émilie.
– Bom dia, eu sou Thierry.
– Moi, je suis Michel.
– Qu'est-ce qu'il y a ?
– Il y a une grève.
Sempre que nos víamos, depois que lhe contei sobre esse exercício de conversação para novatos, começávamos com essa pergunta e com essa resposta. A risada e os dois beijos no rosto vinham em seguida. Ele era cego. Movia-se, contudo, pela cidade com certa desenvoltura e muita curiosidade. Reclamava das dificuldades de acesso a lugares. Ainda não existiam, por exemplo, sinalizações adequadas por toda parte. Eu gostava da sua voz metálica e das imitações que fazia de Charles Trenet. Não, a bem da verdade, ele era melhor cantando Serge Gainsbourg. Vai saber! Cada um com seus gostos e eu tinha os meus, que não eram sólidos como hoje, mas eram alegres como nossas tardes no parque. Michel adorava o Jardim de Luxemburgo, onde se sentava nos dias cálidos para sentir as carícias da brisa. Falava assim. Eu também. Não víamos nisso qualquer marca fatal de idade.
    Éramos jovens. Ele mais do que um. Dez anos nos separavam. A paixão por romances policiais nos aproximava. Li para ele capítulos inteiros de Jean-Patrick Manchette. Houve uma época em que se apaixonou por livros de Tonino Benacquista. De resto, amava os tintos, os conhaques, os queijos secos e as manhãs frescas. Sobre estas, tivemos intermináveis colóquios – palavras que usávamos quando alguém se aproximava. Michel sabia tudo sobre os ventos, do mistral ao minuano, do qual tomara conhecimento ouvindo a leitura de romances platinos. Essas coisas acontecem mais do que as pessoas imaginam. Chegamos a ver juntos partidas de futebol na televisão. Ele já era torcedor do PSG, clube que começava a despontar no cenário francês e contava com os brasileiros Valdo, Raí e Ricardo, o Gomes, não o Rocha. Não, não, o Gomes mesmo. Ele sentia o jogo como se visse as imagens.
    Estudava filosofia e pretendia defender uma tese sobre Berkeley. Sabia tudo sobre ele, mas não de um saber aproximativo. Podia colecionar notas de rodapé. Pegava o 96 de volta para casa. Dizia que era o ônibus da sua vida. Eu o acompanhava e, por vezes, me sentia triste por ele não poder contemplar a beleza do trajeto. Michel pressentia e me consolava com um “vejo de outra maneira”. Nunca se queixava. Amava a vida e sonhava em ser deputado pelo Partido Socialista, embora andasse desencantado com o final do governo Mitterrand. Era, como qualquer jovem, uma usina de utopias. Todo dia, conforme os ventos, queria ser uma coisa diferente. Eu também.
Notícia inesperada – Michel quase não falava sobre a sua cegueira. Era como que um dado indiscutível da sua vida. Quando eu ousava perguntar, ele me dizia que nada havia para comentar. Era como todo mundo, dizia, cada um com suas dificuldades. Eu não sabia muito bem o que falar. Um dia, entre duas taças de Bordeaux, em frente à Sorbonne, perguntei:
– Gostaria de ver?
– Demorou.
– Como?
– Mais cedo ou mais tarde a gente ouve essa pergunta.
    Fiquei constrangido. Não sabia onde me meter. Enfiei a cabeça na taça de vinho. Balbuciei alguma desculpas sem qualquer fundamento.
– Claro que gostaria. Quem não gostaria? Mas posso viver bem sem.
– Ainda espera ver?
– Tenho uma chance. Uma cirurgia.
    Fiquei pasmo. Ele falava tranquilamente. Não sei como acontece com outros. Ignoro se aquilo era da personalidade dele. Parecia comparar os prós e os contras sem paixão. Havia, porém, uma quase imperceptível alteração na sua voz. Eu era bom com nuanças vocais. Depois, sempre há um depois, meu ouvido começou a zumbir e se acabou. Estudantes faziam algazarra na mesa ao lado. Eram espanholas. Omito todas os detalhes de família para encurtar a história, que o leitor tem muitas ocupações e eu preciso ganhar minha vida honestamente. Além disso, não temos um Bordeaux ao alcance da mão. Fui direto ao ponto:
– Vai fazer a operação?
– Vou.
    Ficamos em silêncio. A tarde caía suavemente. Era junho, bem no começo, temperatura amena, uma brisa soprava. Seria já um vento com nome? Eu estava com a veneta. Queria perguntar. Não me contive:
– O que gostaria de ver primeiro?
– As folha do Luxemburgo.
– Que folhas?
– As folhas de outono no chão.
– Por que isso?
– Dizem que são de um dourado incomparável.
    Passaram-se duas semanas. Andei ocupado com a preparação dos meus dois trabalhos de conclusão para o Diploma de Estudos Aprofundados, o famoso DEA. Teria de defendê-los diante de professores sisudos, um deles com fama de implacável. Mesmo assim, fui encontrar Michel no café da esquina da casa dele, em Montparnasse, numa sexta-feira ao crepúsculo. Havia muito gente nas ruas. Quando cheguei, ele já estava numa mesa na calçada. Era o mesmo, sempre impassível, mas a sua voz traía uma ligeira inquietação, tão suave quanto a brisa.
–– Qu'est-ce qu'il y a ?
– Il y a une grève.
A cirurgia seria em três dias.

 


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