Crônica: Berlim sob a neve

Crônica: Berlim sob a neve

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Água de beber

 

      O frio era espesso como uma camada de gesso. Espesso e branco de cortar com faca amolada. O cheiro de café aquecia o corpo e a alma antes mesmo que a bebida entrasse no organismo como uma poção mágica revitalizadora. A paisagem era feita de paredes pintadas com grafites ousados e de ruínas históricas. A temperatura podia chegar a 25 graus negativos. A neve era um brinquedo novo que nos devolvia à infância quase aos 30 anos de idade. O vento assobiava e cortava a pele como um açoite desculpado por ser o azougue da civilização e da riqueza.

À noite, em casa, ouvia “Água de beber” e considerava a poesia de uma expressão tão singela. O que importava naquele instante, na gélida Berlim, era a metafísica do frio, a estética do inverno, as lições do vento, as narrativas incrustradas em cada pedra gelada e as lembranças precoces do Brasil. Tudo era comparação e estremecimento. Datilografava linhas que repicavam na penumbra interrogando o futuro: o que seria? O que viria? O que se podia esperar de um tempo fustigado pela guerra no Iraque, pela queda do muro que dividia a Alemanha e por filmes, na Berlinale, focado nos aspectos mais turvos da humanidade?

Fomos à casa de um jovem escritor no lado oriental da cidade. Na rua, ele andava de mãos dadas com o seu namorado. No Brasil da época, isso era impossível. Eles perceberam nossa surpresa. Em espanhol, nosso amigo explicou que também para eles era novidade e libertação:

– Na DDR seríamos punidos. Era algo que o regime não aceitava.

DDR era a Alemanha comunista. A homossexualidade era vista como doença e traço da cultura burguesa decadente. Os gays tinham vidas secretas. Temiam delações. Nada que o mundo capitalista não tenha praticado. Nosso amigo, porém, explicava que a perseguição na zona de influência soviética havia sido feroz, implacável e permanente. A homossexualidade não era crime na Alemanha Oriental desde 1968, mas os homossexuais paradoxalmente continuariam a ser vistos até o fim como inimigos do Estado. O sistema apostava num futuro redimido sem gays. Um novo mundo se abria também no comportamento. A geleira ruía.

Tudo chamava a atenção. Essa metafísica do frio tinha a consistência de uma borrasca. A vida oscilava entre a branco e o turvo, o colorido dos cabelos dos jovens e a noite caindo às quatro da tarde. Falava-se de utopia, da primavera vindoura, de um novo tempo e de filmes, entre os quais “O silêncio dos inocentes”. Talvez fosse uma maneira de dizer que não existiam cordeiros. O escritor teorizava:

– Só importam a intuição e os efeitos de inteligência.

Falava de sacadas. Palavra que não encontrava boa tradução. Como se podia suportar a rispidez da ventania, a incerteza das mudanças, a violência dos fatos e a brancura da friagem? Na fita cassete, ainda era assim, Vinicius repetia suavemente “água de beber, água de beber camará, água de beber, água de beber camará”. O pessoal queria o que era esse camará. Outros só queriam saber o que era água de beber. Eu, de minha parte, só queria entender essa branca metafísica do frio.

 

 

 

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