Crônica: como cedro

Crônica: como cedro

Poesia em tempos prosaicos

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Em Palomas, um perfume de cedro recendia a cada crepúsculo. Há muitas formas de lembrar. Em cada registro, queima um aroma ao anoitecer. Assim é que eu sinto. Sem razão alguma. Sinto e digo como quem abre uma fresta da janela quando a chuva cai mansamente apenas para se lembrar de algo que não tem em fotografia e nunca mais terá os contornos da matéria. Falo disso para os leitores, esses amigos com quem falo todos os dias. O perfume do cedro ainda me impregna como se a noite já não tivesse caído.

 

Passo a mão no meu cabelo branco

E relembro num suave tranco

Que eu já fui guri lá em Palomas

 

Passava noites ouvindo as bromas

De velhos e esquecidos tropeiros

Manhãs nos mais verdes potreiros

Soltando lindas pandorgas vermelhas

Sentindo a ranhura do vento nas orelhas

 

Passo a mão no meu cabelo branco

E relembro num suave tranco,

Como se a vida fosse uma poesia,

Que eu já fui guri lá em Palomas

 

Lembro das tardes passando pêssego

Do doce de figo borbulhando no tacho

Depois o mate correndo de mão em mão

A velha socando a canjica no pilão

A vida fluindo como um límpido riacho

 

Levo essas lembranças na mala de garupa

Basta a cada dia um estalo, um simples upa

Para eu me ver de novo, os pés descalços,

Galopando no meu petiço naqueles vastos espaços

Até abraçar o vento nas cordilheiras

 

Então tudo se ilumina no meu pensamento

Sou guri, pandorga, aragem no firmamento,

Um velho tropeiro sonhando ao relento

 

Passo a mão no meu cabelo branco

E relembro num suave tranco,

Entre um mate, um causo e um sonho,

Que eu já fui guri lá em Palomas.

Para onde voltarei como cedro.


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