Crônica: homem do trem

Crônica: homem do trem

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Em tempos agudos a crônica faz pensar. Em tempos crônicos o pensamento se agudiza.


      Eu estava dentro do trem. Um percurso que eu fazia todo dia. Um trem nas entranhas de São Paulo. A cidade me parecia indigesta. Nada me encantava. Eu terminava meu trabalho pelas sete da noite. Aguardava no local até nove horas para fugir dos engarrafamentos antes do metrô. A internet só estava começando. Eu lia cinco jornais impressos e todas as revistas disponíveis para matar o tempo. Andava com um livro para escapar do tédio e das longas horas que não faziam qualquer sentido. Quando se está entediado, às raias da depressão, as leituras não fluem. No ônibus, eu contemplava a poluição, o trânsito, o cinza.

Às vezes, eu olhava em busca de uma referência, o horizonte, um morro, algo que surgisse como um sinal.

De quê?

Eu não sabia. S

ó via a densa floresta de edifícios.

Estava acostumado com cidades luminosas ou marcadas por obras monumentais. Um dia, parei num bar e fiquei com ar perdido tentando beber uma cerveja para me sentir alguém normal.

– O que procura? – me perguntou o garçom.

– O mar me bastava – respondi.

Ele se retirou balançando a cabeça como quem diz “só dá louco”.

Deixei a cerveja intacta e fui andando. Uma rua emendava na outra e nenhuma delas desembocava em algo significativo para mim. O que estava fazendo ali? Tinha coisas mais interessantes para fazer em casa. Por que ficava? Eu me sentia na obrigação de passar uma temporada no inferno. Bem, não chegava a ser um pesadelo. Era apenas sem graça. Conheci um cara que disse muito satisfeito algo que me sacudiu:

– Cheguei aqui para ficar três dias. Faz 27 anos. Não voltei.

Eu não ficaria 27 meses. Salvo se alguma luz brilhasse no meu cotidiano. Depois de anos no exterior, eu sentia estranhamente dificuldade de comunicação. Não pela língua, ainda que o sotaque local me desconcertasse, mas pela falta de sintonia na escolha dos assuntos. No trabalho, eu era o invasor a ser abatido. Nada frutificava. A ideia de cosmopolitismo da qual me falavam toda hora me parecia tão verdadeira quanto uma anedota sobre a bondade dos bandeirantes com os índios do Brasil profundo nos tempos da conquista do coração do país.

Entrei no trem com a certeza de que em breve tomaria uma decisão.

O vagão estava quase vazio. Um homem sentou-se em diagonal a mim. Um sujeito grisalho. Vestia um casaco preto sobre uma camiseta branca. Tinha um generoso nariz adunco e uma barba rala. Imediatamente eu pensei: eu o conheço. De onde mesmo? Forcei a memória como pude. Nada. As estações passavam, pela primeira vez rapidamente, a sensação de conhecê-lo era cada vez mais forte. Sem qualquer nome. Ele não me olhava diretamente. Contentava-se em me espiar. Não dissimulava. Olhava sem agressividade. Eu não me atrevia a questioná-lo. Faltavam três pontos para eu saltar. Ele se levantou no penúltimo. Disse:

– Não é aqui. Toca o barco.

Desceu. Por que falo disso agora?

Eu estava no ônibus semana passada. Na Osvaldo Aranha. Em Porto Alegre.

De repente, uma figura na calçada me chamou a atenção. Era ele.

Vestia um casaco preto sobre camiseta branca. Tinha a mesma barba rala. O cabelo branqueara completamente.

 

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