Crônica: no deserto

Crônica: no deserto

A morte na solidão do Marrocos

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Há muitos anos, no Marrocos, eu vi um homem morrer. Nunca esqueci dessa morte por atropelamento no deserto. Na minha novela “Nau frágil” (Sulina), eu a rememorei: “Morte. Na Estrada das Mil Casbás, o pequeno ônibus saltou uma corcova da estrada e ladeou um caminhão que mijava na beira da pista. O deserto serpenteava para todos os lados e Meca ficava sabe-se onde”. Uma linguagem que eu não usaria hoje.

Falei daquela cena que ficou tatuada na minha memória com o espanto de quem via pela primeira vez alguém morrer: “Uma sombra aplastou-se contra a lateral do carro num átimo. Ficou uma gosma na lataria. O garoto esfacelou-se. Ficou estirado no braseiro da rodovia. Não tinha nome, não tinha destino, não tinha nada. Já não era. Nem fora (...) Saiu de trás do veículo como uma miragem. Mas fez barulho”. Confesso que me abalei. Caiu a pressão. Vi o enorme deserto rodar.

Ainda me lembro do que veio em seguida: “Das dobras da areia surgiram mulheres e homens, bichos e crianças, véus e ladainhas. O coro dos alaridos subia para o céu arrancando farpas das rochas. Estavam calmos, mesmo desesperados (...) Eram tão tristes e míseros que nem dantescos eram. Contentavam-se com lagartixas”. Era assim que eu via. Deste jeito: “O motorista do ônibus teve medo de ser linchado e pôs-se a grunhir como um condenado. Chiava de medo da prisão. A menina francesa, a gazela lourinha, desmaiou”. Assim mesmo: “A noite caiu numa atmosfera de velório de filme pobre. Tava lá o corpo estendido no chão, a cabeça esmagada, os miolos de fora, a vida apagada num sopro de quase 50 graus”. Eu via tudo aquilo e sofria. Pelo quê? Pelo choque com a morte de um miserável no meio do nada.

      O que se esperava que acontecesse? Que viesse alguém limpar a estrada e dar continuação à vida como ela sempre fora, como ela era, uma indefinição, um andar de cabeça baixa: “Tarde, muito tarde, chegou o exército. O motorista limpou o ônibus com um pano imundo. O sangue ficou grudado na sarja. O morto, que nem sarjeta arranjou, virou um pacote, um molambo, um troço na carroceria de um caminhão militar”.

      Naquele dia, eu tive uma ideia do mundo: “A morte era ocre. Um imenso corcovear de montanhas áridas e vertiginosas. Uma fornalha, um braseiro, um anônimo beijando o asfalto na flatulência do absurdo”. Sempre penso nessa morte no deserto quando sinto o horizonte estreito. Dessa minha novela, escrita com a alma na mão, repito, às vezes, como se estivesse acometido por um TOC, estas frases: “A lua ameaçou dar um golpe na virada da noite. Guinou para a direita sem avisar. Soldados marcharam na contramão dos raios noturnos”. O que isso significa? Não sei bem. Quando escrevo, costumo deixar que as frases me conduzam.

      Somos diferentes? Mais elevados? Eu pensava e escrevia assim: “Fulguras ao Brasil, florão da América. Iluminou-se o céu do novo mundo. Era só um incêndio num arranha-céu da área central. Um edifício dos anos 60. Decadência. Extraviado, um cara moreno, de cabelo azul, alto como um mastro, fincado na placa de concreto, desembestou o hino nacional em falsete: - Ouviram do Ipiranga às margens flácidas...”

 


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